É de chorar copiosamente de raiva, vergonha e desânimo
quando um bando de enlouquecidos usa o nome de Deus para transformar uma
pequena e sofrida vítima em vilã, aos gritos de “assassina”. É de uma crueldade
sem limites, que faz recrudescer uma angústia que só aumenta: a audácia dessa
gente que saiu das trevas não tem fim?
A pobre menina pobre tinha seis anos quando passou a ser
abusada por um tio, na casa onde morava com os avós. O pai? Não se sabe. A mãe?
Também não. Sem os pais e sem o olhar, o cuidado e a piedade dos adultos,
responsáveis, amigos e vizinhos, que não viram nada ou não quiseram “se meter
na vida dos outros”, o que e quem sobrou? Nada, ninguém. Só o medo, a solidão,
a dor do corpo e da alma.
Histórias assim ocorrem o tempo todo, por toda parte, contra
milhares de meninas e meninos pobres e desamparados neste nosso Brasil tão
lindo, de gente tão alegre e sol o ano inteiro, invejado por natureza pujante.
Um Brasil tão solar que abriga um Brasil tão obscuro, soturno, onde a Justiça
não é igual para todos, juízas injustas se referem à “raça” do suspeito para
condená-lo e crianças não têm o direito de serem crianças. Abandonadas pela
família e pelo Estado.
A nossa brasileirinha, tão sofrida, menstruou cedo e
engravidou aos 10 anos do criminoso que usava da intimidade da casa para
destruir o corpinho, a autoestima e a vida dela. A lei autoriza o aborto em
caso de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto. Ela se encaixa
em dois dos três critérios e a Justiça autorizou, mas médicos no Espírito Santo
lavaram as mãos e ela teve de ser acolhida em Pernambuco, num hospital que
interrompeu uma gravidez que poderia tê-la matado, depois de longa tortura que
ninguém viu, ou não quis ver. The end? Não, foi só mais um capítulo dessa
novela macabra. O drama dela continua, assim como o dos quase 70 mil estupros
por ano.
Almas do mal rondam a desgraça alheia, como a blogueira que
desfilava de peito de fora quando feminista e agora, depois de se metamorfosear
em bolsonarista, é alvo da Justiça por jogar fogos de artifício contra o
Supremo e capaz de divulgar o nome da criança grávida e o endereço do hospital.
Que pessoa é essa? Que mente deturpada é essa? É preciso responsabilizá-la pelo
crime, previsto em lei, de expor menores de idade em situações adversas. Além
de investigar quem vazou para uma pessoa com essa índole os dados da menina e
do seu destino para a execração pública.
É demoníaco, mas mulheres e homens que se dizem religiosos,
até pastores, atenderam à convocação e se aglomeraram diante do hospital para
aprofundar a dor, a vergonha e a humilhação daquela criança. Só faltaram
máscaras brancas e tochas para reproduzir a Ku Klux Klan, reencarnação do
nazismo nos Estados Unidos condenada em todas as democracias saudáveis.
Parabéns ao médico Olímpio de Moraes, que cumpriu a
autorização judicial e enfrentou a hipocrisia e os ensandecidos para defender,
com coragem e generosidade, o direito à saúde e à vida. “Obrigar uma criança a
ter uma gravidez forçada é um absurdo”, disse ele. Sim, absurdo, maldade,
escândalo, uma desumanidade. Como Nação, não podemos compactuar com
perversidades assim. Não se trata de ser contra ou a favor do aborto, mas de
humanidade.
Que a violência contra essa brasileirinha acorde a sociedade
para esses abusos que acontecem com uma frequência assustadora sob as nossas
barbas. É preciso proteger nossas crianças, incentivar as denúncias de quem
finge que não vê e punir os culpados. Para as seitas que chamam a pequena
vítima de “assassina”, convém lembrar que o real criminoso está solto, ao lado
de milhares de outros prontos a destruir a vida e o futuro de crianças como
ela.
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