Em movimentos paralelos, quem sabe, coordenados, governos
estaduais e federal editaram recentemente leis, decretos e portarias para
facilitar o acesso às armas. A despeito da crise econômica aguda, alguns
Estados até zeraram impostos sobre a compra de escopetas, carabinas e afins.
Em impressionante sintonia, deputados e senadores
preparam-se, em outra frente, para instituir a cobrança de impostos sobre os
livros, o que dificultará o já tortuoso acesso à leitura no Brasil.
Essa perversa sincronicidade atualiza e transporta para a
era Bolsonaro um debate levantado pelo escritor Miguel de Cervantes, no início
do século XVII, sobre o valor das armas e dos livros em uma sociedade.
Simultaneamente, coloca à prova os pilares sobre os quais essa sociedade se
edifica, ou oscila.
No vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, o presidente
Jair Bolsonaro disse que gostaria que todo “o povo se arme”. Em nenhum momento
de sua gestão ele manifestou o desejo de representar uma população instruída,
com amplo acesso à literatura e outras artes, embora um nível sofisticado de
leitura seja atributo de países desenvolvidos.
Erra quem se reporta aos livros como inutilidades, ou “coisa
da elite”. A leitura é um dos critérios do Pisa, exame internacional aplicado
pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), clube
dos países ricos no qual o Brasil sonha ingressar.
No quesito leitura, o último relatório do Pisa, divulgado há
nove meses, afirmou que a performance média dos brasileiros “parece flutuar em
uma tendência horizontal”, ou seja, estagnou. Apenas 2% dos estudantes
brasileiros alcançou nível alto de proficiência.
Os brasileiros pontuaram 413 em leitura, onde o número 500 é
referência. Os chineses pontuaram 555, os canadenses, 520, e os americanos,
505. Os chilenos registraram 452 pontos, para citar um vizinho.
Mesmo diante desse desempenho, na votação da reforma
tributária, o Congresso caminha para taxar em 12% a receita bruta das editoras.
O ministro Paulo Guedes disse que livro é produto da elite.
Falso, já que a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, o mais abalizado
levantamento sobre o tema, divulgado na semana passada, mostrou que a maior
queda no nível de leitura ocorreu entre os mais ricos e escolarizados: 12%
contra 4% na média nacional.
Uma leitura míope de dois capítulos do clássico “Dom Quixote
de la Mancha” entusiasmaria, a princípio, os devotos da bandeira armamentista.
Nos capítulos 37 e 38, o engenhoso fidalgo sustenta a primazia das armas sobre
as letras: “Tirem da minha frente os que afirmarem que as letras levam vantagem
sobre as armas, pois direi a eles que não sabem o que dizem”.
Segundo Dom Quixote, os partidários das letras alegam que as
armas não se sustentam sem elas, porque a guerra também tem suas leis e está
sujeita a elas, sendo que leis são o território das letras. Os armamentistas
retrucam que as leis não se sustentam sem as armas, porque estas defendem as
repúblicas, conservam os reinos, protegem as cidades, limpam os mares de
piratas.
A arenga prolonga-se num fluxo de argumentos incompatível
com o espaço limitado da coluna. Mas o que se pretende aqui é explorar a
espantosa atualidade de um debate provocado por Cervantes há quase meio milênio
(a primeira edição de “Dom Quixote” remonta a 1605), diante de uma conjuntura
nacional em que se articula a flexibilização do acesso às armas, em contraponto
ao aumento do preço dos livros.
“Esse momento do Brasil mostra o desprezo pelo livro e o
valor das armas, mas o valor da arma de fogo, e o da justiça que cada um faz
pelo impulso, pelo uso indiscriminado das armas, sem nenhum princípio de
direitos humanos”, critica a professora Maria Augusta da Costa Vieira, titular
de literatura espanhola da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (USP).
Especialista em Cervantes, a professora Maria Augusta
ressalva que é preciso situar historicamente o que Dom Quixote defendia ao
invocar a primazia das armas sobre as letras. Na tradição medieval, o modelo do
herói conciliava a força e a sabedoria, e suas armas eram a espada e a lança,
manejadas com a força do braço.
Maria Augusta sublinha que Dom Quixote tinha pavor de armas
de fogo, introduzidas nas guerras no século XVI, em que Cervantes atuou.
“Quixote era um leitor inveterado, tudo o que ele fez na vida foi ler. Ele
defende armas que enaltecem o valor do guerreiro, e não aquelas que podem
destuir o inimigo apertando um dedo, e nada mais”.
A professora acrescenta que pode haver também uma crítica
velada do próprio Cervantes às armas de fogo, porque o escritor foi atingido
por uma bala na Batalha de Lepanto, em 1571, que lhe tirou os movimentos da mão
esquerda. Foi com uma mão imobilizada que Cervantes escreveu as mil páginas de
uma das obras fundadoras do romance moderno.
Por isso, é revelador que, ao fim do capítulo 38, o
cavaleiro andante condene as armas de fogo, e ao mesmo tempo, exalte o poder de
sua lança: “abençoados sejam aqueles séculos que careceram da espantosa fúria
desses instrumentos endemoniados de artilharia”.
Nesse trecho Quixote afirma que a artilharia de fogo
“permitiu que um braço infame e covarde tire a vida de um cavaleiro corajoso e
que, sem que se saiba como ou vinda de onde, chegue uma bala perdida”.
Concluiu: “Me deixa receoso pensar que a pólvora e o chumbo poderão me impedir
de me tornar ilustre e famoso pelo valor de meu braço e pelo fio de minha
espada”.
Maria Augusta alerta que o discurso de Dom Quixote sobre
armas e letras não pode ser interpretado sem uma visão ampla, no contexto do
personagem, até porque contém uma dose da reconhecida ironia cervantina.
“Dom Quixote é a encarnação dos maiores valores humanos que
a gente reconhece, como o amor, a verdade, a fé e a justiça. Ele era um
humanista, no sentido pleno do termo”, arrematou.
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