sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

A CONSTITUIÇÃO E AS PROVAS OBTIDAS POR MEIOS ILICÍTOS

Geraldo Brindeiro, O Estado de S.Paulo

A Constituição federal garante a brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil a inviolabilidade dos direitos e liberdades fundamentais. Dentre tais garantias estão a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, do domicílio, do sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas.

O Supremo Tribunal Federal consolidou jurisprudência no sentido de que só excepcionalmente, mediante autorização judicial fundamentada, é possível, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, a interceptação de comunicações telefônicas. E a lei define como crime, sujeito a pena de reclusão de dois a quatro anos, e multa, “realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo de justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”.

A Constituição estabelece que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Provas obtidas mediante violação de garantias constitucionais e por meio de crimes são juridicamente inválidas. Essa norma constitucional é inspirada em precedentes históricos da Suprema Corte dos Estados Unidos relativos à exclusionary rule, fundada na 4.ª Emenda à Constituição americana, que garante “the right to remain free of unreasonable searches and seizures”. E na jurisprudência denominada fruits of the poisonous tree, expressão usada pela primeira vez pelo justice Felix Frankfurter no seu voto no caso Nardone v. United States (1939), para significar que as provas derivadas de atos ilegais (without proper warrant and no probable cause) estão contaminadas na origem, não podem ser usadas no processo. Tal jurisprudência decorre ainda da observância do postulado do due process of law.

As provas autônomas, isto é, obtidas de fontes independentes (independent source doctrine), são juridicamente válidas e podem ser utilizadas no processo. Esse é o entendimento das Supremas Cortes dos Estados Unidos e do Brasil. No julgamento do Recurso de Habeas Corpus n.º 90.376/RJ, observou o eminente relator, ministro Celso de Mello, in verbis: “Se, no entanto, o órgão de persecução penal demonstrar que obteve, legitimamente, novos elementos de informação a partir de uma fonte autônoma de prova – que não guarde qualquer relação de dependência nem decorra da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo vinculação causal – tais dados probatórios revelar-se-ão plenamente admissíveis, porque não contaminados pela mácula da ilicitude originária”.

São também consideradas juridicamente válidas, segundo a jurisprudência de ambas as Supremas Cortes, podendo ser utilizadas no processo as provas obtidas mediante “encontro fortuito”, isto é, por meio de interceptação telefônica licitamente conduzida, porém relativas a terceiros interlocutores não diretamente investigados (inevitable discovery doctrine).

E se a conversa tiver sido gravada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro – por ele próprio ou com a ajuda autorizada de terceiro – não há que falar de interceptação telefônica. Não há interceptação ou captura (seizure) pelo próprio interlocutor relativamente a conversa telefônica por ele realizada, sobretudo quando há investida criminosa do outro contra ele. Não se configura nessas circunstâncias invasão ilegítima de privacidade do outro interlocutor, observado o princípio da proporcionalidade. Provas obtidas na gravação para legítima defesa do interlocutor são juridicamente válidas e podem ser usadas no processo.

Finalmente, nas hipóteses de provas obtidas por meio de interceptações telefônicas ilegais, com a captura de mensagens mediante crimes praticados por hackers, evidentemente tais supostas provas – mesmo se não adulteradas – são juridicamente inválidas e inadmissíveis no processo, conforme a Constituição. Se houve anteriormente condenação criminal com base em provas de crimes obtidas licitamente, e de forma autônoma, comprovando a materialidade e autoria dos crimes, com maior razão as provas ilícitas, além de inválidas juridicamente, se admitidas, seriam absolutamente inúteis.

O Supremo Tribunal Federal deverá examinar em breve questão jurídica análoga no julgamento de habeas corpus impetrado com o intuito de anular sentença penal condenatória por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro praticados por ex-presidente da República. A Procuradoria-Geral da República opinou pela rejeição do pedido, no qual a alegação de suspeição do juiz fora originalmente fundada no fato da aceitação do cargo de ministro da Justiça. Reiterou o parecer diante da pretensão do impetrante de utilizar publicação de conversas telefônicas obtidas ilicitamente por meio de crimes praticados por hackers. E em pronunciamento mais recente concluiu pela inadmissibilidade do habeas corpus por estar solto o réu e não demonstrarem as mensagens conluio ou suspeição, ainda que fossem lícitas e autênticas. O ministro Edson Fachin e a ministra Cármen Lúcia votaram pelo não conhecimento do habeas corpus.

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DOUTOR EM DIREITO POR YALE, PROFESSOR DA UNB, FOI PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA (1995-2003)

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