quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

A MISÉRIA DO PRESIDENCIALISMO

José Serra, O Estado de S. Paulo

O destino dos EUA, a República mais antiga, mais estável, mais rica e mais poderosa dos tempos modernos, está em alto risco e, apesar de seus sintomas de decadência terem surgido na década de 1960, ninguém é capaz, hoje, de prever seu futuro. O destino de uma das maiores democracias do mundo, que alterna períodos de relativa estabilidade com outros de autoritarismo, períodos de alto crescimento econômico com outros de retrocesso, é incerto até mesmo quanto ao ano que começa. Refiro-me ao Brasil, onde não se pode hoje prever em que direção irá o atual retrocesso econômico e sanitário, nem se, e como, enfrentaremos os desafios do aumento do desemprego e da pobreza.

Os dois países não estão isolados nessa condição de enfrentar desafios que parecem maiores do que os recursos de que dispõem para superá-los, entre os quais as ameaças à liberdade e à igualdade. Diferentemente das décadas de 1970 e 1980, em que a chamada onda democrática liberou do autoritarismo dezenas de países, as ameaças à democracia voltaram a se espalhar por todo o mundo – incluídas as Américas do Sul, Central e, agora, a América do Norte.

O fenômeno tem sido tratado como neopopulismo, ou neonacionalismo, e frequentemente associado ao surgimento de lideranças com perfil centralizador e autoritário, que defendem um regime em que o poder seja exercido contra os inimigos da nação em relação direta entre o líder e “o povo”. Alguns autores consideram que o requisito essencial para a definição do líder populista é que o principal obstáculo à sua conjunção carnal com o povo são as instituições, quaisquer que sejam. Daí a sua necessidade de esvaziar, contornar, enfraquecer ou demolir as instituições vigentes.

Nos últimos anos se multiplicaram, na literatura acadêmica, nos think tanks e na mídia, estudos e opiniões centrados na explicação do perfil dos líderes neopopulistas. Poucos são os que levam em conta que o perfil populista é um estilo de liderança muito frequente em todos os países e em todos os níveis de governo, e a questão fundamental é saber como se tornou possível que um aventureiro, muitas vezes desconhecido ou sem experiência executiva, alcance o mais alto poder em uma nação.

Dessa perspectiva, que considero a mais adequada para entender as incertezas hoje enfrentadas pelo Brasil e pelos EUA, trata-se de compreender as condições políticas que tornaram possível uma sociedade moderna e complexa entregar livremente o poder a um líder populista. Os muitos anos de vida pública que dediquei a estudar o sistema político brasileiro me permitem apontar o regime presidencialista, o sistema de voto proporcional e a relação entre os Poderes constituídos como o conjunto de fatores que tornam a Nação vulnerável ao aventureirismo em sua principal encarnação, o populismo.

O presidencialismo é um regime de governo que, por definição, produz uma divisão entre Poderes distintos de igual legitimidade, mas não garante que as maiorias que elegem esses Poderes sejam idênticas, ou sequer compatíveis. A convivência produtiva entre o presidente e o Parlamento depende sempre de um conjunto complexo de fatores, sobre os quais o presidente tem pouco ou nenhum controle – as relações entre partidos, as agendas dos parlamentares, as insatisfações, as necessidades e os ideais do eleitorado. Com isso a probabilidade de cumprir suas promessas, ou mesmo de simplesmente controlar a gestão pública, tende a ser baixa, abrindo as portas para candidatos que prometem tudo a custo de nada. Os quais, se eleitos, farão o mesmo percurso, agregando mais insatisfação ao ânimo popular, e reiniciando percurso semelhante.

Daí decorre uma tendência que vem sendo observada em toda parte: a corrosão da legitimidade das democracias representativas, uma vez que o representante é visto como um usurpador, que não ouve, não cumpre seus compromissos com os representados e nem sequer os respeita.

No regime parlamentar, que defendo, o presidente representa o Estado, mas quem exerce o governo é, por definição, o líder de um partido majoritário ou capaz de formar uma coalizão majoritária. O mandato do governo depende da maioria parlamentar, e ambos dependem de cooperar para cumprir as expectativas do eleitorado.

O sistema de voto proporcional no Brasil exacerba a perda de legitimidade da democracia representativa e os obstáculos à capacidade presidencial de governar. Exercido com lista aberta em megadistritos, ele produz, por construção, uma relação opaca entre representante e representado, o que reforça os sentimentos de frustração e impotência do eleitor, sentimentos também encontrados nos EUA.

Desde o fim do mandato de Bill Clinton, em 2000, apenas Barack Obama foi vitorioso nas urnas, graças a um colégio eleitoral concebido para limitar o voto popular direto. O sentimento de frustração e impotência do eleitor serviu de catalisador do ódio mobilizado por um aventureiro para demolir as instituições e perpetuar-se no poder. Não conseguiu, mas seu legado de desmoralização da legalidade vigente e da convivência pacífica entre cidadãos terá consequências imprevisíveis.

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