domingo, 10 de janeiro de 2021

CAPITÓLIO, GENOCÍDIO E FANTA UVA

Antonio Prata, Folha de S.Paulo

O ônibus 422 parou na rua do Catete, Rio de Janeiro. Meu amigo João tirou o olho do livro e deu uma espiada pela janela, pra ver se já era o seu ponto. Não era. Nem o dele nem o de ninguém. O motorista desceu e entrou numa padaria. Uns minutos depois, ele voltou e berrou pro cobrador: "Ô, Nélio: e de refresco, tu quer o quê?!". Mais um tempo e o motora chega com dois pastéis e uma Fanta Uva 2 litros —pro Nélio.

Esse evento aparentemente irrisório na história da humanidade explica a invasão do Capitólio, nos EUA e a morte de pretos e pretas nas periferias brasileiras tão bem quanto "Como as democracias morrem" ou "Como as democracias chegam ao fim". (Estar na vanguarda do atraso tem dessas vantagens: a gente pega o bonde descarrilado andando e pode sentar na janelinha).

O motorista e o cobrador não compreendem que estão a serviço dos passageiros, num veículo a serviço da cidade. Privatizam o público como Bolsonaro instrumentaliza a PF e a Abin para limpar a bunda suja do filho criminoso. Ou como Trump, o bebê mais poderoso da Terra, incapaz de entender que o presidente da República não é o dono do playground, mas o zelador. Na hora de sair ele se recusa, senta-se na gangorra e deixa o país inteiro suspenso lá no alto, apavorado.

Desde quarta, na CNN americana, os âncoras Chris Cuomo e Don Lemon repetem ininterruptamente que, diante da invasão do Capitólio, quem se pergunta "como isso foi possível?!" ou passou os últimos quatro anos assistindo à "Ilha da Fantasia" ou, mais provavelmente, é mal-intencionado. (A mesma turma que, no Brasil, faz vista grossa pra assassinato de pobre e derrubada da Amazônia, contanto que se aqueça a economia).

Trump está desde as primárias dizendo claramente que vai usar o seu poder para destruir a democracia, aumentar a cisão social e levar os EUA de volta aos dias gloriosos em que John Wayne matava os índios e os pretos sabiam o seu lugar. Foi eleito com esta plataforma, com apoio da Ku Klux Klan. Assim como Bolsonaro, com o apoio dos milicianos. Os dois passam os dias botando fogo no mundo e as noites postando as selfies ao lado das chamas. Vez por outra, pra aliviar a culpa dos cúmplices, postam uma fotinho fantasiados de bombeiros.

Conrado Hubner, Celso Rocha de Barros, Ilona Szabó, Reinaldo Azevedo, Steven Levitsky, David Runciman, Max Weber, Hannah Arendt, Montesquieu, Platão, Zeus, Xangô, por favor, me expliquem: por que cazzo quem rouba um pote de xampu vai pra cadeia e dois genocidas que trabalham contra as medidas sanitárias na maior pandemia em cem anos, facilitando a morte de meio milhão de pessoas, comem, dormem e delínquem com o nosso dinheiro? Por que a gestante que interrompe a gravidez é criminosa e estes dois canalhas que condenam à morte gerações e gerações pelos efeitos catastróficos do aquecimento global vivem em palácios, servidos por garçons, com bandejas de prata, "pegando as mulheres pelas b*****!" ou "comendo gente" com o dinheiro que falta no SUS?

O mundo tá muito errado. Na raiz. Isto não tem nada a ver com direita ou com esquerda. O buraco é quilômetros mais embaixo. O republicano Mitt Romney e o psolista Marcelo Freixo estão do mesmo lado, assim como Jair Bolsonaro e Nicolás Maduro estão do outro.

"Caminho por uma rua que passa em muitos países" (...) "Minha vida, nossas vidas/ formam um só diamante". Precisamos urgentemente compor "uma canção/ Que faça acordar os homens/ E adormecer as crianças".

Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.

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