Nos oito dias compreendidos entre a véspera do Natal e a virada do ano o Congresso Nacional está em recesso, as redações dos jornais funcionam em regime de rodízio e a população em geral, mesmo em tempos de segunda onda da pandemia, está concentrada nas festas ou em viagens de férias. Em Brasília, é a época perfeita para aprontar.
Em edição extra do “Diário Oficial da União” (DOU), publicada no dia 31 de dezembro, Bolsonaro concedeu benefícios para alguns e desalento para milhões, além de desafiar mais uma vez o Congresso Nacional.
De um lado, medidas provisórias estenderam o regime especial para reembolso de passagens pelas empresas aéreas (de 31/12/2020 para 31/10/2021) e ampliaram em mais dois anos o prazo para os cinemas se adaptarem às regras de acessibilidade para pessoas com deficiência – providências que deveriam ter sido implantadas em 2019; ou seja, antes do novo coronavírus.
Mais grave, Bolsonaro rompeu um pacto com deputados e senadores e, na surdina, determinou a manutenção da restrição de acesso ao benefício de prestação continuada (BPC) somente para idosos e pessoas com deficiência cuja família tenha renda per capita inferior a ¼ do salário-mínimo. É bom lembrar que desde o início da pandemia o Congresso trava uma queda de braço com o Palácio do Planalto tentando ampliar a cobertura do BPC para aqueles que recebem até meio salário-mínimo.
A MP nº 1.023 dá um tempo maior para Paulo Guedes encontrar recursos para uma política assistencial pós auxílio emergencial, mas aliada a dezenas de vetos à Lei de Diretrizes Orçamentárias, também anunciados nos últimos minutos de 2020, representa uma nova afronta ao Congresso.
Mas não foi só no 31 de dezembro que a Imprensa Nacional anunciou novidades. Na véspera do Natal, outra edição extra do DOU veio repleta de presentes em forma de decretos, entre eles a concessão de indulto natalino para militares condenados por crimes praticados em serviço, a criação de uma nova estatal para cuidar da navegação aérea e novas regras para a regularização fundiária em terras da União e na Amazônia.
Aproveitar períodos de baixa atenção do Congresso e da opinião pública para editar medidas impopulares não é incomum na experiência internacional. Em 1994, enquanto todos os olhos dos italianos estavam concentrados no jogo que daria ao país a chance de disputar a final da Copa do Mundo contra o Brasil, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi editou um decreto beneficiando centenas de políticos envolvidos na Operação Mãos Limpas. Para continuar no campo futebolístico, Vladimir Putin valeu-se da abertura da Copa da Rússia, em 2018, para, numa canetada, elevar a idade mínima para aposentadoria no país.
Os exemplos acima foram citados por Milena Djourelova e Ruben Durante para justificar sua pesquisa sobre estratégia e timing de atos presidenciais. Com foco dos Estados Unidos, eles analisaram as datas e os contextos das ordens executivas (similares aos nossos decretos) emitidas pelos presidentes americanos entre 1979 e 2016, confrontando-os com dados sobre audiência de notícias na TV.
Assim como no Brasil, os ocupantes da Casa Branca são constantemente criticados por avançar sobre a competência do Congresso ao emitir normas que, sob a desculpa de regulamentar leis, acabam extrapolando e criando direitos e deveres.
A pesquisa de Djourelova e Durante revelou que as ordens executivas dos presidentes americanos têm maior probabilidade de serem emitidas quando a cobertura da mídia está concentrada em outros assuntos, que não a política. Foi o caso, por exemplo, quando Donald Trump perdoou um xerife acusado de injúria racial e baniu soldados transgêneros das Forças Armadas enquanto o país se mobilizava para enfrentar o furacão Harvey, em 2017.
Os dados também indicam que o aproveitamento estratégico da distração pública é mais frequente quando o Congresso é dominado pelo partido rival e quando a medida trata de assuntos não relacionados ao dia-a-dia da administração (como a reestruturação de órgãos ou a execução orçamentária, por exemplo) ou não vinha sendo discutida publicamente nas semanas anteriores – o famoso “efeito surpresa”.
Por aqui isso não é nenhuma novidade. Muito antes de Bolsonaro, todos os últimos presidentes brasileiros aguardaram o período entre o Natal e o réveillon para surpreender.
Sarney aumentou o capital de empresas estatais e concedeu benefícios para seus funcionários, enquanto Collor instituiu uma generosa política de preços mínimos para os usineiros do Nordeste, seu reduto eleitoral. Com o Plano Real em gestação, Itamar Franco lançou um pacotaço de aumento de impostos no último dia útil do ano, prática que foi seguida por seu sucessor Fernando Henrique quando a vaca parecia ir para o brejo no apagar das luzes de 1998.
Mas nem só de medidas amargas foram os finais de ano do governo FHC. Houve também a concessão de benefícios e subsídios para setores específicos, prática intensificada durante a gestão de Lula e Dilma com inúmeros programas de tratamento tributário especial criados ou prorrogados aos 45 minutos do segundo tempo. Sob a administração petista, aliás, também foram frequentes os aumentos salariais para diversas carreiras – sempre por medida provisória e no período entre 24 e 31 de dezembro.
Para fechar o ciclo pré-Bolsonaro, Temer inovou aproveitando as festas de fim de ano para reformular marcos regulatórios, mexendo sem aviso prévio nas regras do jogo aplicáveis aos setores de petróleo, saneamento, imigração, energia elétrica, segurança pública e ambiental.
“Dormientibus non ducurrit ius” é uma antiga regra do direito romano. A experiência brasileira com normas emitidas nos estertores do ano mostra que, quando a mídia e os cidadãos baixam a guarda, os presidentes se aproveitam para conceder benesses ou tungar os contribuintes. Depois não adianta reclamar, pois “o direito não socorre aos que dormem”.
É preciso ficar vigilante o ano todo. Lembremos disso no fim de 2021. Um bom ano a todos!
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