Em 3 de novembro, Donald Trump perdeu a eleição para a Presidência dos Estados Unidos e os republicanos foram vencidos na Câmara dos Representantes. Na Geórgia, mais recentemente, os democratas conquistaram a maioria no Senado. As vitórias eleitorais dos democratas propiciam a Joe Biden uma base sólida para a execução de um ambicioso programa de governo, tanto no plano interno quanto no internacional.
No dia 6 de janeiro, Trump sofreu uma segunda derrota, desta vez em seu próprio partido, pela decisão de algumas de suas principais lideranças, como o vice, Mike Pence, e o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, em aprovar a certificação dos delegados eleitos para o Colégio Eleitoral, como é legal e de praxe, ao contrário do que pretendia o presidente.
A ocupação do Capitólio, ostensivamente incentivada por Trump e membros de sua família, provocou o repúdio da opinião pública, por representar um atentado ao maior símbolo da democracia americana. E, como se não bastasse, mídias sociais decidiram suspender o acesso do presidente a suas plataformas, sob a alegação de incentivo à violência. Ainda que os motivos possam ser louváveis, não deixa de ser insólito que uma empresa privada possa censurar o presidente de um Estado.
Trump deixa a Casa Branca abatido e desmoralizado. As próximas pesquisas de opinião poderão estimar quantos na sociedade, e especialmente em seu próprio partido, deixaram de apoiá-lo. Diante desse cenário incerto e turbulento, resta saber o que ocorrerá com Partido Republicano e com o trumpismo no novo capítulo político que se inicia com a posse de Biden.
Lideranças republicanas já vinham manifestando seu incômodo com o casamento de conveniência entre o seu partido e o presidente. Martin Wolf, respeitado colunista do “Financial Times”, já havia condenado, de modo incisivo, o que chamou de pacto faustiano entre a plutocracia de Wall Street e Trump, pelo qual o Partido Republicano cede sua estrutura política ao presidente em troca das isenções na reforma tributária.
A temporada da luta interna no Partido Republicano está aberta. Alguns dos principais apoiadores de Trump já se transformaram em seus algozes. O que restará do trumpismo, até há pouco percebido como a principal força conservadora para a eleição de 2024? Ao longo de todo o mandato, a aprovação de Trump oscilou entre 37% e 42% do eleitorado.
Como manter esse capital político sem a caneta de presidente e sem os comícios que organizava quase todos os meses, em diferentes regiões do país? Alguns parlamentares republicanos que até há pouco se vangloriavam da proximidade com o presidente e buscavam tirar proveito eleitoral de sua transformação em “representantes da classe operária” agora se dissociam de Trump em público.
Qual o impacto das derrotas de Trump sobre os seus os seguidores pelo mundo? É bom ter presente que o trumpismo não se limita às maquinações de um líder carismático, por vezes desequilibrado, para ganhar as eleições, como fez em 2016. Na verdade, desde o início de seu ingresso na política, o presidente republicano se apresentou como o porta-voz de um movimento mundial, o populismo nacionalista, contra a globalização e o “globalismo”, em defesa da hegemonia americana (“America First”), que amealhou adeptos em várias partes do mundo, especialmente na Europa e inclusive no Brasil.
Hoje parece anedótico, mas foi real o projeto patrocinado por Steve Bannon, o guru de Trump, ao deixar a Casa Branca, para fundar uma escola de quadros, num convento medieval na pequena Trisulti, no centro da Itália, com o objetivo de formar os cruzados do século XXI. Professores chegaram a ser selecionados, entre os quais alguns brasileiros.
Ainda é cedo para avaliar o futuro da onda nacional-populista de que Trump é o principal expoente. Se é verdade que o Brexit venceu, também é certo que as hesitações britânicas em relação à União Europeia são históricas. O Reagrupamento Nacional na França e a Alternativa para a Alemanha avançaram, mas hoje parecem estacionados ou mesmo em refluxo. Na Áustria, Holanda e Itália, diferentes modalidades de populismo também recuam, diante da percepção de que movimentos sociais podem eleger ou ajudar a eleger candidatos, mas enfrentam sérios desafios para governar diante da ausência de uma estrutura partidária. Hungria e Polônia parecem ser a exceção que confirma a regra.
E o Brasil? Bolsonaro e Trump apresentam semelhanças notáveis. O carisma, a capacidade de comunicação, a competente utilização das mídias sociais, a aversão aos partidos e à imprensa. Certas condições em ambos os países também registram coincidências, como a persistência do racismo estrutural e da desigualdade. Nos dois casos, o compromisso com a democracia mostrou-se enraizado nas forças da sociedade, nas instituições e no estamento militar.
Um dos equívocos da recente campanha de Trump foi o de buscar repetir os temas e as táticas eleitorais de 2016, sem levar em conta uma das máximas da política: a história não se repete, o que na primeira vez é drama, um enredo sério, na segunda vez é uma farsa, como foi efetivamente a campanha republicana em 2020.
Em nossos dias, as mídias sociais estão sob suspeição, a mentira cansou e a radicalização é percebida como destruição, sem nada construir. No Brasil, as eleições do ano passado, ainda que municipais, emitiram alguns sinais para 2022, ao priorizar a reeleição de administradores experimentados, trazer de volta a centralidade dos partidos políticos, em detrimento das mídias sociais, a moderação nos debates e a objetividade das propostas.
*Sergio Amaral, ex-professor de ciência política na Universidade de Brasília, foi embaixador em Washington
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