Pouco antes da conquista do planeta pelo coronavírus, pegava fogo o debate sobre a crise da democracia. Da versão política de Steven Levitsky à nênia econômica de Thomas Piketty, os pensadores ocidentais se dividiam entre a desconfiança num sistema de lógica tão frágil e a inesperada ascensão de gente como Boris Johnson, Matteo Salvini e sobretudo Donald Trump. Este último trazia a chave que abriu a caixa de Pandora do delírio antidemocrático, iniciado com a crise de 2008. A decadência desse baile de máscaras ideológico nos pegaria em cheio — a eleição, no Brasil, de Jair Bolsonaro, dez anos depois da inauguração dos novos tempos.
Como disse Manuel Castells, “a desconfiança nas instituições (…) nos deixa órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse comum”. Não há interesse comum quando os “representantes do povo” administram seus próprios sonhos em nome das sociedades que supostamente representam. O movimento antidemocrático é a inversão da energia popular: não cabe aos líderes realizar os “sonhos do povo”, mas orientar o povo sobre quais devem ser seus sonhos. É daí que nascem os “brexits”, rompimentos indesejáveis, xenófobos e populistas, que não podem ser condenados por ter sido escolhidos por eleitores.
O surgimento de um personagem excessivo, narcisista e grosseiro como Bolsonaro, que chega ao poder com uma ideologia semelhante à de Trump, pretende liberar energias reprimidas. E nos ameaça, para o futuro próximo, com algo parecido com a invasão do Capitólio. “A chave do sucesso de Trump”, escreve Matt Taibbi, “é a ideia segundo a qual as velhas regras de decência foram feitas para os perdedores que não têm o coração e a coragem de ser eles mesmos”. Essa é a mensagem do trumpismo numa era “narcisista de massa”, bem adequada a ela. O apoiador herda, por transição natural, o poder do apoiado, o herói político que o salvará não apenas da fome, mas também da insignificância de onde só pode se embasbacar com o universo estratosférico dos heróis inatingíveis da Marvel.
Foi o vírus que nos salvou desse mundo de mentira, dessa ficção de blockbuster direitista. A tragédia da Covid-19 nos fez voltar à realidade, trocar o papo enfeitado da política pelo discurso óbvio da sobrevivência da humanidade.
No Brasil do século XIX, por ocasião da Guerra do Paraguai, o governo imperial obrigara cada província a enviar uma percentagem de sua população para a luta. Os senhores de terra prometiam então a seus escravos alforria imediata a quem fosse à guerra no lugar deles. A maior parte desses “voluntários” acabava morta, esquecida no campo de batalha; e os que retornavam voltavam aos poucos à condição de escravos, numa sociedade em que não havia, para eles, outra coisa a fazer para ter um teto e matar a fome. É como se a escravidão estivesse em sua natureza e pudesse ser chamada de democracia, já que dependia apenas da vontade dos que a exerciam.
O melancólico livro de David Runciman, sobre o fim da democracia liberal, nos afirma, logo no início, que “nada dura para sempre”. E acrescenta o que nega ao longo de suas páginas: “A democracia sempre esteve destinada a passar, em algum momento, para as páginas da história”. Mas as páginas da história reproduzem apenas o modo como certas ideias são tratadas em um determinado tempo. Se pensarmos na convivência humana sem limitações ou prejuízo para o outro, estaremos praticando a ideia de democracia. Essa ideia nasceu há muitos séculos, nas reuniões públicas de cidadãos da Grécia Antiga. E, como ideia, já chegou hoje à ausência absoluta de discriminação, onde todos têm os mesmos direitos, seja qual for seu gênero, cor, origem ou formação. A única interdição segue sendo não atropelar os interesses legítimos e o justo desejo do outro.
O fracasso da invasão do Capitólio pelas tropas civis de Trump se deu graças à aliança entre membros dos partidos Democrata e Republicano, políticos tão diferentes quanto Nancy Pelosi e Mitch McConnell. Selvageria e barbárie dos invasores, em cuja tropa não havia um só negro, passaram longe das comoventes passeatas que proclamavam que “black lives matter”. Uma nova democracia pode surgir daí, talvez menor, mas certamente mais humana, sem bravuras mas com solidariedade. Uma democracia que não serve apenas a quem já tem o poder. Mas a do vizinho, nascida da consciência de que estamos todos vivendo num mesmo mundo e dele temos que tirar os mesmos proveitos para sermos felizes. Em tempos de tanta incerteza, não custa nada citar Gramsci: a velha ordem já não existe, e a nova ainda está para nascer.
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