segunda-feira, 22 de março de 2021

SÓ ANTIBOLSONARISMO NÃO BASTA

Editorial O Estado de S.Paulo

A inédita crise social, econômica e humanitária causada pela pandemia de covid-19 no Brasil, associada à forma irresponsável e muitas vezes criminosa como o governo de Jair Bolsonaro a administrou até aqui, parece ter dado ensejo ao que parecia impossível: algum entendimento entre forças políticas de centro e de esquerda que há tempos se tratam aos empurrões.

É prudente não nutrir grande entusiasmo, dado o histórico de desavenças e o caráter de alguns dos personagens envolvidos, mas nos últimos dias petistas e tucanos vêm se tratando de maneira razoavelmente civilizada e têm demonstrado genuína disposição de colaborarem uns com os outros para enfrentar a pandemia – e, por tabela, a insanidade disseminada pelo bolsonarismo no País.

“É hora de dar os braços ao João Doria, ao Eduardo Leite, independente (da eleição) de 2022. É a hora de os líderes demonstrarem grandeza”, disse ao Estado o governador do Piauí, o petista Wellington Dias, referindo-se aos governadores de São Paulo e do Rio Grande do Sul, ambos tucanos. Por terem adotado medidas de restrição para conter a pandemia e por serem dois dos principais críticos de Bolsonaro, Doria e Leite vêm sendo atacados brutalmente pelo presidente e por seus camisas pardas nas redes sociais.

O governador Dias falava como emissário do ex-presidente Lula da Silva, que pretende se incluir no esforço de governadores para obter vacinas – com seu alegado prestígio internacional, o ex-presidente acha que pode ser útil. É claro que, em se tratando de Lula da Silva, não há ponto sem nó, mas, nas atuais e dramáticas circunstâncias, já será de grande ajuda se o chefão petista pelo menos não atrapalhar.

Noves fora as eventuais artimanhas de Lula, o fato é que é raríssimo ouvir da boca de um petista graduado como o governador Dias um chamamento tão claro à superação de divergências com vista ao enfrentamento de uma crise que será sentida por gerações. E o gesto encontrou um lado tucano aparentemente inclinado a colaborar, não apenas contra a pandemia, mas contra a insanidade bolsonarista.

Assim, é parte desse balé político a ordem do governador Doria para investigar ameaças feitas a Lula por um bolsonarista na internet – o tucano, feroz adversário do PT, chegou a ligar para a presidente petista, Gleisi Hoffmann, para comunicar as medidas que tomou. Ele mesmo vítima de delinquentes bolsonaristas nas redes, o governador paulista parece disposto a deixar de lado momentaneamente suas profundas diferenças com o PT em nome do combate ao extremismo liderado pelo presidente.

Nada disso é por acaso. Ocorre em meio à reorganização das peças no xadrez da eleição de 2022, em razão da ressurreição de Lula da Silva como candidato. Tudo, portanto, passa por cálculo político, mas parece haver algo mais do que isso: trata-se de uma tomada de consciência de que não pode haver divergência política insuperável ante o imperativo de impedir a reeleição de Bolsonaro.

Assim, o antibolsonarismo – sentimento crescente no País, conforme atestam as mais recentes pesquisas – tende a ser o pilar da campanha dos candidatos de oposição. É tentador, portanto, oferecer aos eleitores um nome que se apresente como o oposto absoluto do presidente e de tudo o que ele representa.

Pode até servir para ganhar a eleição, mas tal projeto nada diz sobre o futuro do País. Corre-se o risco de repetir o que fez o próprio Bolsonaro, que nos palanques se apresentou como a encarnação do antipetismo e, uma vez no poder, pelo menos até este momento, limitou-se a destruir o que havia, sem erguer quase nada que prestasse no lugar.

É preciso aproveitar esse raro momento de convergência política na oposição para articular um projeto que vá além da promessa de interrupção da esbórnia bolsonarista. Será um alívio não ter mais Bolsonaro na cadeira presidencial, é claro, mas quem vier a ocupá-la deve ser portador de um grande entendimento nacional para superar as condições que, em primeiro lugar, permitiram que Bolsonaro chegasse lá. A restauração da inteligência no governo e na política é fundamental, mas é apenas o primeiro passo da longa caminhada para reconstruir o País.

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