O ministro da Economia usou estranha analogia ao tratar do Orçamento de 2021: o pouso de uma nave em Marte. Não vale a pena transcrever o que foi dito. Nos anos 1990 a TV Cultura transmitia o programa Mundo da Lua. Lucas Silva e Silva, personagem principal, gravava suas histórias sempre começando com o bordão: “Alô, alô, planeta Terra chamando”.
O governo tem nas mãos verdadeiro imbróglio orçamentário a resolver até o dia 22 de abril, prazo final para sancionar ou vetar a Lei Orçamentária Anual (LOA). A subestimativa das despesas obrigatórias, a exemplo das previdenciárias, é expressiva, como mostrei no meu artigo de 30/4. Em que pese a incerteza intrínseca aos cenários futuros, é fato que o volume de despesas discricionárias (as mais suscetíveis de cortes) da LOA não caberá no teto dos gastos públicos.
O teto é uma regra constitucional. Não tem escapatória. Os créditos extraordinários ficam de fora, é verdade, mas só podem ser editados em situação específica, quando comprovada situação de imprevisibilidade e urgência, conforme o parágrafo 3.º do artigo 167 da Constituição. O auxílio emergencial, por exemplo, será pago por meio de crédito extraordinário. Outros gastos com saúde têm sido feitos na mesma base, como em 2020. Aí incluídas as verbas para a compra de vacinas.
Mas a despesa ordinária é limitada ao teto. Se as despesas obrigatórias projetadas pela Instituição Fiscal Independente (IFI) se confirmarem e as despesas discricionárias da LOA não forem cortadas, o gasto total sujeito ao teto ficará em R$ 1,518 trilhão, isto é, quase R$ 32 bilhões acima do limite constitucional. E atenção: o processo orçamentário não se desenrolou em um dia, o projeto da LOA foi apresentado em agosto.
É da natureza do Congresso buscar elevar as emendas parlamentares. Não é novidade. Em 1989, o presidente José Sarney viu-se diante de um dilema: vetar o primeiro Orçamento com receitas reestimadas pelo Congresso ou sancioná-lo e, dali em diante, consagrar uma prática que alteraria a lógica do processo orçamentário concebido na Carta de 1988. A correção desse sistema passa pela adoção de projeções independentes para as receitas públicas. A estimativa de arrecadação não deveria ser fruto de decisão política, mas de trabalho de especialistas com autonomia.
Quando o teto de gastos passou a limitar a estratégia do recálculo das receitas, partiu-se para o cancelamento de despesas como meio para abrir espaço fiscal. Seria legítimo se realista. Vale dizer, em 22 de março de 2021, antes da aprovação do Orçamento, o governo publicou documento com números atualizados para o cenário fiscal prospectivo que não batem com a LOA.
Em entrevista a Idiana Tomazelli, do Estado, o senador Márcio Bittar explicou: “Para mim é muito ruim ficar levando a responsabilidade de ter inventado o número e os cortes. Jamais eu faria isso. Não foi obra minha. Isso foi construído a todas as mãos”. De fato, o processo orçamentário – que tem rito próprio definido na Constituição, em razão de sua importância – sempre foi gestado pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso e pelo Poder Executivo. Foi assim em todos os governos.
Os que acompanham minimamente o processo orçamentário sabem que o trabalho é conjunto, como bem disse o senador Bittar. Não adianta, agora, gastar energia com o que não resolverá a confusão. É momento de construir soluções, que demandarão articulação, participação dos técnicos da área jurídica e orçamentária e coordenação com os órgãos de controle. Para ter claro, é a vez da experiente burocracia estatal.
A matemática é simples: as despesas de Previdência, abono salarial, seguro-desemprego e compensação ao regime geral de aposentadorias pela desoneração da folha de salários terão de ser suplementadas, pois vão ser realizadas. Caso contrário, quando faltar orçamento, os beneficiários não receberão suas aposentadorias e pensões, seus auxílios e transferências. Seria inimaginável operar sob esse risco.
Para suplementar as dotações orçamentárias desses gastos obrigatórios será preciso cortar as discricionárias, que incluem as emendas parlamentares. Uma solução seria o veto parcial da LOA combinado com o envio de projeto de lei do Executivo para o Congresso a fim de corrigir os problemas. Outra, a sanção da LOA sem alterações acompanhada de projeto de lei mais amplo. Esta segunda opção, a meu ver, é arriscada, pois pode envolver a sanção de uma lei em desacordo com os preceitos da responsabilidade fiscal.
Fernando Rezende, referência no tema das finanças públicas nacionais, defende, há anos, que se promova verdadeira reforma orçamentária e fiscal no País. Contudo os caminhos escolhidos têm sido pavimentados por pinguelas. Mais dia, menos dia, elas desabam. De remendo em remendo, tem-se um sistema fiscal pouco eficiente, rígido e sem transparência. O País perdeu a capacidade de planejar. Esse é o pecado original não expiado.
É hora de trazer a nave de volta. “Alô, alô, planeta Terra chamando.”
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