A gestão das políticas de enfrentamento à pandemia no Brasil foi e está sendo catastrófica – e muito da responsabilidade, com razão, tem sido atribuída ao Executivo federal, que elevou negacionismo e crendices ao status de políticas públicas. Por seu turno, a atuação legislativa, principalmente federal, se foi essencial na definição do valor da primeira versão do auxílio emergencial, de maneira geral também não pode ser apontada como constante e efetivo contraponto ao governo federal – e também por isso o Parlamento tem sido cobrado.
A pergunta que não tem sido feita é: e o Judiciário?
Por que o Judiciário não tem dado respostas efetivas à pandemia?
Primeiro, é preciso uma distinção entre o Judiciário com um todo e o STF (Supremo Tribunal Federal). Não seria razoável apontar eventual omissão do Supremo quando decidiu sobre as competências concorrentes de União, estados e municípios sobre a pandemia; a assistência de saúde e das barreiras sanitárias nas comunidade indígenas; a obrigatoriedade de divulgação de dados sobre a pandemia; a obrigatoriedade de elaboração pelo governo federal de um plano de enfrentamento da Covid-19 voltado à população quilombola, bem como a suspensão de processos de reintegração de posse contra tais comunidades; a constitucionalidade da vacinação compulsória; a possibilidade de estados e municípios comprarem vacinas no caso de atraso do Plano Nacional de Imunização; a continuidade de custeio pela União dos leitos de UTI nos estados; a proibição de requisição pela União de respiradores e outros insumos dos estados; embora não tenha avançado na discussão crucial sobre teto de gastos.
Do ponto de vista processual, é questionável que a atuação do STF venha se dando em demandas que, em uma situação normal, teriam na Suprema Corte a última palavra, não a primeira. As respostas que vem dando o STF são elementos de um ciclo pernicioso: já que as demais instâncias do Judiciário não tomam medidas efetivas e emergenciais para o enfrentamento da pandemia, o STF assume essa função, para que alguma resposta haja; já que o STF vai, de qualquer forma, se manifestar sobre todo e qualquer tema importante e emergencial sobre a pandemia, as outras instâncias se eximem de tomar qualquer decisão, esperando o veredicto da Corte Suprema. Essa dinâmica, notadamente em casos que poderiam ser apreciados desde a primeira instância, demonstra a inconsistência e a debilidade do Judiciário em apresentar soluções efetivas e rápidas à sociedade acerca da pandemia. E isso certamente não se deve à falta de assunto.
Defensorias Públicas, Ministérios Públicos e sociedade civil provocaram as primeiras instâncias em um sem-número de processos, muitos dos quais perto de completar um ano sem decisão efetiva até o momento. Como regra, surge o universal argumento de que não caberia ao Judiciário imiscuir-se nas escolhas do Executivo. Mesmo que esse Executivo seja o principal responsável por quase 300 mil mortes, e contando. Será possível que, nesse fúnebre trajeto empreendido pelo governo federal, nenhuma ilegalidade, nenhuma violação a direitos foi cometida? Pouco provável.
A ação que busca eliminar a fila do Bolsa Família a fim de garantir um mínimo de proteção social à população mais vulnerabilizada durante a pandemia completa um ano em 24 de março. Estima-se que o represamento atinja mais de 2 milhões de pedidos. O adiantamento do abono salarial, solicitado para depositado integralmente em maio, foi indeferido, começou a ser pago em julho de 2020 e só terminou em fevereiro de 2021.
A errática implantação do auxílio emergencial culminou em ações coletivas questionando diversos problemas – desde a necessidade de um número exclusivo de telefone celular para cada requerente e a impossibilidade de atualização de dados do CadÚnico para que o benefício pudesse ser deferido, passando pelos problemas de diferença de dados nos diversos cadastros federais e das regras para a concessão do benefício, além das aglomerações e filas quilométricas nas agências da Caixa e fraudes que inviabilizaram que parte dos recursos chegasse a quem precisava. Ao menos não se pode reclamar de incoerência: todas as ações coletivas ajuizadas pela Defensoria Pública da União sobre o assunto foram indeferidas nos cinco Tribunais Regionais Federais do país, e não há notícia de alguma outra porposta por outro órgão que tenha tido resultado diferente.
Ações que buscaram a implantação de lockdowns ou outras medidas de distanciamento não foram atendidas. No Enem, discutiu-se a necessidade de adequar seu cronograma entre todos os atores envolvidos. Mas o que se viu no início do ano foram aglomerações sem distanciamento, uso inadequado de máscaras, salas cheias durante a prova e estudantes impedidos de realizá-la, além da maior abstenção histórica desde a implantação do SiSU. Ainda assim, o Judiciário respaldou as medidas do MEC. Foi igual o destino da maioria das ações que requeriam adiamentos da volta às aulas dos ensinos fundamental e médio ou providências para garantir a segurança sanitária de alunos, professores e demais profissionais.
Mesmo diante da ausência de profissionais de saúde em várias localidades, não se permitiu a contratação de médicos estrangeiros para atuar na linha de frente do enfrentamento à pandemia. Ações que buscaram uma maior transparência na divulgação dos dados ou um maior detalhamento das informações sobre os casos de Covid-19, com o intuito de orientar políticas públicas, também não tiveram sucesso. As que buscavam políticas para determinados grupos, como a população negra, comunidades quilombolas ou indígenas, imigrantes, só encontraram eco em casos muito específicos. O mesmo aconteceu com as ações que buscavam testagem em massa, porque o Judiciário desobrigou os planos de saúde de cobrirem exames de detecção de Covid. Só depois a ANS determinou o contrário.
Enquanto outros países adotaram medidas de desencarceramento em massa para evitar a propagação da pandemia nas prisões, o negacionismo estatal encontrou respaldo no Judiciário. Mesmo diante de uma recomendação do CNJ, que indicava a necessidade de adoção de medidas diferentes da prisão para pessoas nos grupos de risco ou em presídios superlotados, para aqueles que não estivessem sendo acusados ou não fossem condenados por crimes com violência, as dezenas de habeas corpus coletivos que foram impetrados iam caindo, um a um, sem sucesso, em todos os tribunais estaduais e federais e também no STJ – salvo, no caso deste último, em relação às liberdades condicionadas à fiança (ou seja, que beneficiavam pessoas que já deveriam estar soltas caso não fossem pobres e tivessem dinheiro para pagar a fiança) e nas prisões civis de devedores de alimentos (que não cometeram crime, embora tenham cometido um ilícito civil).
A mesma recomendação do CNJ traz determinações específicas sobre gestantes, lactantes e mães de crianças de até 12 anos, na esteira do célebre HC 143.641 julgado pelo STF, que reconheceu o direito de essas mulheres, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, terem suas prisões substituídas por prisão domiciliar, em qualquer circunstância e fora da situação da pandemia. Milhares de mulheres nessas condições permanecem presas, mesmo diante da decisão do STF, que não se faz cumprir pelas instâncias ordinárias.
Se no atacado, não houve desencarceramento, houve no varejo. Embora um varejo bastante distinto e elitizado: Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto, Dario Messer e Fabrício Queiroz. A apurada análise que se fez em cada um desses casos, provavelmente correta e adequada à situação peculiar de saúde de cada um desses beneficiados, infelizmente não foi a mesma nem com o mesmo resultado para as milhares de pessoas atendidas pelas Defensorias Públicas, e que tiveram seus pedidos negados.
Passado um ano da pandemia, a produção judicial sobre ela, com medidas que evitaram seu alastramento ou que ajudaram a combatê-la, é ínfima. As exceções nos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais apenas confirmam a regra. De maneira geral, o que se viu foram parcas e corajosas decisões liminares de primeira instância conferindo alguma proteção à população, quase sempre prontamente cassadas pelo respectivo Tribunal.
Dois episódios recentes ilustram a atuação do Judiciário na pandemia: de um lado, as diversas decisões determinando instalação urgente de leitos de UTI por estados e municípios (como se a instalação de uma UTI fosse igual a comprar um pãozinho na padaria) e transferência imediata de pacientes para UTI (que estão completamente ocupadas – tira-se alguém já internado para colocar outro no lugar por ordem judicial?); e, de outro, a liberação de compras de vacinas por associações de magistrados, atuando em causa própria em verdadeira medida de fura-fila.
Somos o país que, com sobras, pior lida com a pandemia e com seus nefastos efeitos na população. Diante deles, o que se tem até agora são decisões judiciais, em sua maioria, tímidas e conservadoras, fundadas na independência quase absoluta dos executivos e no formalismo próprio a uma interpretação literal e limitadora do texto da lei. Na divisão de responsabilidades entre os poderes, é preciso cobrar respostas mais urgentes e efetivas também do Judiciário – pois as que temos até agora pouco ou nada colaboram com o desenvolvimento de alternativas diante da catástrofe já posta pela pandemia, e que se agravará ainda mais com tantas omissões.
JOÃO PAULO DORINI
Defensor público federal e defensor regional de direitos humanos em São Paulo.
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