Nos primórdios, a ordem era a seguinte: em primeiro lugar a Igreja, depois a unidade do Estado e as leis e só então viria o interesse da população.
“Juro manter a Religião Católica Apostólica Romana, a integridade e indivisibilidade do Império e fazer observar a Constituição Política da Nação Brasileira, e demais Leis do Império, e prover ao bem geral do Brasil”, exigia o art. 103 da nossa primeira Constituição, proclamada por Pedro I em 25 de março de 1824.
Logo após a Independência, a liberdade de culto existia apenas no papel, pois o catolicismo era o credo oficial; o único com direito a possuir templos – as demais práticas religiosas eram permitidas apenas em residências ou espaços fechados, sem demonstração externa. E havia um detalhe: para ser deputado, era preciso ter pelo menos 400 mil réis de renda líquida e professar a religião do Estado – ou seja, ser católico.
Com a Proclamação da República foi abolido o vínculo oficial entre Igreja e Estado no país. A Carta Magna de 1891 proibiu o governo de estabelecer, subvencionar ou atrapalhar o funcionamento de qualquer culto. O princípio da laicidade prevalece até hoje, insculpido no inciso I do art. 19 da atual Constituição.
E foi com base nesse dispositivo que a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos obteve do ministro Kássio Nunes uma liminar impedindo governadores e prefeitos de editarem normas restringindo cerimônias por causa da pandemia. Esse entendimento, contudo, foi derrubado na semana passada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, que decidiu que a proteção à vida não viola o princípio da liberdade religiosa.
Afora o debate se a fé pode ser exercida num contato direto com Deus ou carece de interação comunitária (“igreja” vem de “reunião”, em grego), muitos veem na controvérsia jurídica uma motivação muito mais mundana: a queda de arrecadação de dízimo.
Como igrejas não publicam seu faturamento, fomos atrás de um dado indireto para ver a quantas anda esse “mercado”. Contando com a ajuda de Joaquim Honório, do Laboratório de Analytics da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba, compilamos a data de criação de todas as pessoas jurídicas inscritas no banco de dados da Receita Federal que exerciam “atividade de organização religiosa” (CNAE 9491-0).
Como pode ser visto no gráfico, há uma aceleração na abertura de entidades ao longo das últimas décadas. No entanto, após atingir um pico de 12.116 novos estabelecimentos em 2013, o movimento é revertido, com um aprofundamento significativo em 2020, quando chegou a “apenas” 4.808 até novembro.
O arrefecimento no lançamento de novas igrejas Brasil afora pode ser derivado de inúmeros fatores, inclusive em função de uma acomodação frente ao forte crescimento das últimas décadas.
Todavia o ciclo econômico adverso em vigor desde a grande recessão de 2015/2017, potencializado pelas medidas de distanciamento exigidas pela covid-19, surge como candidato mais provável para explicar não só essa reversão de tendência, como também o lobby das entidades religiosas junto aos três Poderes da República.
Além das ações propostas no STF e da evidente influência que exercem sobre Jair Bolsonaro, líderes religiosos promovem uma ampla agenda no Congresso Nacional. Uma pesquisa no site da Câmara dos Deputados indica que existem pelo menos 370 projetos de lei em tramitação com essa temática, sendo 70 apresentados desde o início da pandemia.
Além da pressão para a manutenção dos templos abertos – somente em março foram cinco propostas apresentadas com esse objetivo – e a pauta de costumes, há uma variada pauta tributária, o que reforça a tese de que a crise econômica não poupou padres, pastores e afins.
Organizações religiosas há tempos tentam por vias legislativas e judiciais ampliar os limites da imunidade tributária que, de acordo com o texto atual, só atinge seus templos – e não todas as suas outras atividades.
Além da recente derrubada do veto que abre caminho para um perdão bilionário de dívidas tributárias, o apetite da bancada da Bíblia não tem limites. As propostas gravitam em torno de questões de grande vulto, como a isenção de impostos para a remessa de valores para o exterior (PL nº 4.936/2020) e o afastamento da legislação trabalhista sobre as funções exercidas nas igrejas – que seriam consideradas trabalho voluntário, segundo o PL nº 4.188/2020.
Desconsiderando que a mesma Constituição que concede imunidade aos templos também proíbe que nosso Estado subvencione religiões com subsídios e isenções, os parlamentares buscam até mesmo a dispensa do recolhimento de direitos autorais na execução de músicas nos templos e meios de comunicação (PL nº 3.399/2020) e gratuidade no pagamento de taxas cartoriais na aquisição de imóveis (PL nº 2.870/2019).
É tanta a ganância de parlamentares que agem como procuradores de igrejas que corremos o risco de, em breve, regredirmos ao tempos do Império, quando interesses religiosos pairam acima do país, da Constituição e do próprio povo brasileiro.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”
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