sexta-feira, 30 de abril de 2021

UMA HISTÓRIA INTELECTUAL DA EXPERIÊNCIA CHILENA

Alfredo Riquelme Segovia, Horizontes Democráticos

Ao reler o livro de Alberto Aggio, Democracia e socialismo: a experiência chilena, publicado pela primeira vez em 1993 e cuja terceira edição em português tenho a honra de prefaciar, reencontro a obra em que, pela primeira vez, vi se desdobrar em uma mesma narrativa explicativa a história do processo político vivido no Chile durante o governo de Salvador Allende e, ao mesmo tempo, a história das discussões que ao longo da experiência e principalmente após seu catastrófico final, tentaram dar sentido ou transformá-la em fonte de lições muito diferentes.

Há três décadas atrás e vinte anos depois da via chilena ao socialismo, agregando a escrita de uma magnífica interpretação histórica do que o Chile viveu entre 1970 e 1973, e também traçando, para isso, uma síntese da trajetória da sociedade e da política chilena durante o século XX, Alberto Aggio produziu a primeira história intelectual daquela inédita experiência política, que buscou articular legalidade e revolução, compromisso democrático e determinação, para construir o socialismo com um respaldo da população que variou de um terço a pouco menos da metade do eleitorado.

Nessa história intelectual dos debates em torno da experiência chilena, o profundo conhecimento da trajetória e das características das culturas políticas do país analisado se articula com uma compreensão extraordinária da discussão global da esquerda da época a respeito da inserção dessa experiência no então denominado processo revolucionário mundial. Aggio examina, intrinsecamente, os argumentos em torno da experiência chilena e suas lições provenientes de políticos e acadêmicos que se consideravam líderes ou intelectuais orgânicos de uma comunidade imaginada como sujeito universal de uma longa luta pelo progresso e pela igualdade dos setores mais negligenciados do mundo, em torno dos quais se acreditava estar culminando no século XX o encontro entre história e utopia por meio da transição do capitalismo para o socialismo.

Comunistas e socialistas, miristas e mapucistas[1], no Chile, juntamente com marxistas soviéticos e ocidentais, trotskistas, maoístas e guevaristas, no mundo, compartilhavam a crença de praticar uma ciência da revolução, entendida como um conjunto de conhecimentos fortemente organizado e hierárquico sobre como tornar realidade a transferência de poder dos capitalistas para os trabalhadores, o que permitiria iniciar a construção do socialismo. Todos eles acreditavam conhecer os passos para acessar a utopia, que, por sua vez, se constituía na justificativa de todos os meios considerados necessários para tornar realidade o triunfo da revolução, que acreditavam faria a história marchar para essa utopia. Todos eles compartilhavam singulares discursos sobre a história em andamento, que articulavam o passado e o futuro e, geralmente, tinham a comunidade revolucionária como protagonista e como antagonista – ou aliados mais ou menos ocasionais – as outras organizações, instituições, poderes, sujeitos coletivos e indivíduos que participavam na luta pelo poder.

Aggio abordou, em 1993, pela primeira vez e a partir de um enfoque que privilegiava a história intelectual, a tensão finalmente insolúvel entre a via chilena ao socialismo –pacífica, democrática, pluralista e sujeita à legalidade – e aquele cânone revolucionário predominante na esquerda mundial da época, que os próprios protagonistas da experiência chilena se empenhavam em proclamar sua adesão. Explicou como, em uma esquerda cujos militantes e intelectuais aderiram a tal cânone, os recursos conceituais para pensar e conduzir a via chilena ao socialismo ficaram severamente limitados, assim como limitaram também a capacidade de se assumir as lições de uma derrota, para a qual não se pode ignorar a incongruência entre o cânone revolucionário e a mutação teórica que teria exigido a articulação da democracia pluralista com um processo revolucionário de orientação socialista. Esse amplo e profundo enfoque, que conecta a interpretação histórica da experiência chilena com a historicização do debate global em que ela se inseriu constitui, na minha avaliação, a característica mais original e inovadora deste libro, visto pelo prisma da história intelectual. E, 28 anos depois, quando a própria argumentação do autor já foi incorporada a esta história, ela continua a ser uma das chaves para sua recorrente atualidade.

[1] Miristas corresponde ao MIR – Movimiento de Izquierda Revolucionario, que não fazia parte da Unidade Popular (UP). Mapucistas corresponde ao MAPU – Movimiento de Acción Popular Unificado, partido de inspiração cristã e marxista, membro da UP, junto com comunistas e socialistas.

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