A Polícia do Senado abriu na terça-feira passada uma investigação contra Celso Rocha de Barros, colunista da Folha de S. Paulo, por um artigo no qual disse torcer “para que a CPI da Pandemia faça seu trabalho e mande o presidente para a cadeia”. Dois senadores mencionados denunciaram o articulista por crimes contra a honra, e a polícia do órgão legislativo o intimou a depor. É o mais recente exemplo de um clima de hostilidade contra os críticos que, desde a posse do ultradireitista Jair Bolsonaro na presidência, já resultou em diversas denúncias contra professores, jornalistas, ativistas, cientistas e até um youtuber.
Essas ações procedentes da órbita do bolsonarismo costumam motivar autênticos linchamentos nas redes sociais, incluindo ameaças de morte e, no caso das mulheres, também de estupro. Muitas dessas investigações acabam sendo arquivadas —um desenlace que não surpreende outro denunciado recente, Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional na Universidade de São Paulo e colunista, com cerca de 61.000 seguidores no Twitter. “É uma tentativa de instrumentalizar a Justiça para nos intimidar”, disse em uma entrevista por videconferência. “O alvo não somos nós [os investigados], e sim a comunidade acadêmica, a comunidade dos críticos. Tentam desgastar a indivíduos específicos, mas sobretudo, e muito mais importante que os casos particulares, é o silenciamento coletivo e difuso que esses casos geram nos outros. O efeito é a autocensura”, afirma o pesquisador do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo.
O clima de intimidação e assédio se intensifica na medida em que a pandemia se agravava e Bolsonaro se enfraquece. Com mais de 456.000 mortos, o temor de uma terceira onda e uma CPI no Senado que revela diariamente indícios graves de negligência, a rejeição ao presidente está crescendo, segundo as pesquisas. E na mira entram as liberdades de expressão, de imprensa e acadêmica. O Brasil é o quarto país que mais se tornou autoritário entre 2010-2020, segundo o último relatório do Instituto V-Dem, um centro de estudos da Universidade de Gotemburgo (Suécia) que avalia a qualidade da democracia no mundo. O pior do ranking é a Polônia.
Os denunciados no Brasil são profissionais de âmbitos diversos, mas que compartilham uma postura crítica, ou meramente fiscalizadora, em relação ao mandatário e seu Governo. Contra o professor Hübner, que nesta semana alertou no Fórum Inteligência sobre o aparelhamento dos tribunais, pesa uma queixa-crime, apresentada a título pessoal pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, em que ele é acusado de calúnia, injúria e difamação por causa de um artigo e vários tuítes.
Por suspeita de calúnia também foi investigada uma das principais líderes indígenas do Brasil, Sônia Guajajara, a pedido da FUNAI. Já o youtuber Felipe Neto, cujo canal que tem 40 milhões de seguidores, foi investigado com base na Lei de Segurança Nacional dos tempos da ditadura militar, depois de chamar Bolsonaro de genocida pela forma como ele administra a crise sanitária. O escritor J. P. Cuenca enfrenta 143 denúncias de pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, aliada do presidente, por um tuíte que foi considerado ofensivo; a ONG britânica Media Defense assumiu a defesa do autor. Os casos contra Guajajara e Neto já foram arquivados.
Outros foram intimidados sem investigação alguma. A pesquisadora Larissa Bombardi, especializada em pesticidas, teve que ir embora do Brasil após receber ameaças por seu trabalho crítico à cultura da soja. E a equipe de Marcus Lacerda, autor de um ensaio clínico com cloroquina para pacientes de covid-19 em Manaus, sofre uma campanha de ataques cibernéticos para prejudicar sua reputação. “Se fossem criticar todos que fazem ensaios clínicos que demonstram danos em uma possível intervenção, teríamos poucos avanços no desenvolvimento de novos medicamentos”, diz a carta de solidariedade enviada a Lacerda por um colega da Universidade de Oxford. Bolsonaro transformou a ineficaz cloroquina em política de Governo.
Patricia Campos Mello, ganhadora do prêmio Rei da Espanha de Jornalismo em 2018 e do Maria Moors Cabot, da Universidade Columbia (EUA), conhece bem as intimidações judiciais e as ameaças na internet, porque foi uma das primeiras vítimas. O presidente acabava de tomar posse quando a apontou publicamente com um comentário de índole sexual. “Aqui nunca tínhamos visto essas campanhas de intimidação pessoal, eram coisas do Chávez [na Venezuela]”, disse a repórter por telefone nesta quarta-feira. Após fazer coberturas na Síria e Iraque, foi em São Paulo que a veterana repórter da Folha precisou solicitar proteção pela primeira vez na vida. Processou Bolsonaro por danos morais e ganhou em primeira instância, mas é ré em outros dois processos abertos por bolsonaristas.
Argumenta que os ataques “pretendem tanto intimidar como mobilizar os seguidores mais radicais” do mandatário, e que a perseguição judicial contra profissionais específicas —“com um componente misógino no caso das mulheres”— se soma ao corte na verba publicitária para a imprensa independente e nas pressões públicas e privadas sobre empresários para que não anunciem nos veículos que o bolsonarismo considera “antipatriotas”, em referência a Globo, Folha e Estado.
O Instituto V-Dem observa que a censura governamental e a hostilidade contra os meios apartidários vêm aumentando de maneira constante no Brasil, sobretudo desde a posse de Bolsonaro. Os processos de retração democrática costumam seguir um padrão, segundo o instituto sueco: “Os Governos, primeiro, atacam os meios de comunicação e a sociedade civil, polarizam a sociedade ao faltar com o respeito aos seus adversários e difundir informações falsas, e depois solapam as eleições”. Um manual de instruções que Bolsonaro parece seguir passo a passo. Atualmente, está semeando dúvidas sobre as garantias das urnas eletrônicas, já de olho nas eleições presidenciais de outubro de 2022.
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