domingo, 23 de maio de 2021

"BOLSONARO UNIU TODOS CONTRA ELE, POLÍTICOS ANTES ANTAGÔNICOS HOJE CONVERSAM"

Aiuri Rebello, EL PAÍS

Carolina Botelho: ‘Bolsonaro uniu todos contra ele. Políticos antes antagônicos hoje conversam’

A foto de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva juntos, o registro de uma tentativa de aproximação de adversários históricos, sinalizou ao país a possibilidade da formação de uma frente partidária ampla para tentar derrotar o presidente Jair Bolsonaro nas urnas ano que vem. Longe de inusitada, a reunião entre Lula e FHC é consequência natural da dramática conjuntura política do país, considera a cientista política Carolina Botelho. “Lula é o único candidato viável capaz de derrotar Bolsonaro ano que vem, não existe terceira via”, diz a pesquisadora do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do Laboratório de Estudos Eleitorais de Comunicação Política e de Opinião Pública das universidades IESP e UERJ. Na entrevista abaixo, Botelho analisa as mais recentes pesquisas de opinião para a disputa presidencial e o momento político do atual Governo. “Se você pensar na CPI da Pandemia, ela não deixa de ser uma frente ampla”, analisa.

Pergunta. Como você analisa essa aproximação entre os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT)?

Resposta. Vejo com bons olhos, acho que pode abrir muitos caminhos que pareciam trancados na política brasileira. Na verdade, é uma consequência de uma série de articulações políticas que tem ocorrido este ano, uma movimentação de bastidor muito forte de diversos atores simbolizada hoje no Nelson Jobim, ex-ministro dos dois que tem trânsito nos dois campos, colocando-os para conversar pessoalmente. Talvez seja uma sinalização de ruptura com uma polarização que existe entre esquerda e direita, que só vimos crescer desde o advento da redemocratização. Esse campo comum de diálogo estava interditado e agora parece que está sendo aberto, isso é muito bom. São dois líderes políticos de campos que duelaram entre si pelo poder nos últimos 20, 30 anos no cenário nacional e que nos últimos anos ficaram alijados do centro político.

P. Essa foto dos dois juntos é um sinal inequívoco que vem aí a tal da “frente ampla” para enfrentar o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022?

R. Eu não vejo esse encontro objetivamente como início de uma frente ampla, mas ela de certa forma está acontecendo por vários lados. Se você pensar na CPI da Pandemia, ela não deixa de ser uma frente ampla. Temos o Renan Calheiros (MDB-AL) na relatoria, que também é uma liderança política histórica que estava alijada do centro político nos últimos anos e volta à tona nesse papel de defesa da República democrática, vemos o Tasso Jereissati (PSDB-CE) elogiando o Humberto Costa (PT-PE), o Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que apoiava o Governo e hoje é contra. Quer dizer, temos uma série de políticos antagônicos unidos fazendo oposição ao Bolsonaro na CPI. Então essa formação de frente ampla já está acontecendo em várias frentes na verdade.

Existem dois fatores muito importantes. O primeiro é que, ao longo do atual Governo, ficou claro para vários desses atores antagônicos o quanto o Bolsonaro é deletério para a sociedade, para as instituições democráticas e a democracia. Ele não só enfraquece a democracia, como inviabiliza o funcionamento dos partidos políticos e, no longo prazo, ameaça até sua existência, da esquerda até a direita democrática, e acredito que essa percepção hoje é majoritária no sistema político. O segundo é a pandemia. O presidente se colocou a favor da tese de imunidade de rebanho desde o início da pandemia, o que custou muitas vidas e até agora não serviu para nada. Então existe um enorme desgaste por causa da tragédia que isso está potencializando no país. Esses dois fatores são catalisadores dessas conversas, como a de Lula e FHC, ou dessa união prática como vemos no caso da CPI. A tendência é que esses acordos comessem a ser viabilizados para a eleição do ano que vem.

Mais em torno destes dois pontos: enfraquecimento das instituições democráticas e a pandemia de covid-19. Partidos e políticos que antes eram vistos como antagônicos hoje conversam abertamente, o que há pouco tempo que não acontecia.

P. A última pesquisa do Datafolha traz o crescimento das intenções de voto no ex-presidente Lula, que vem depois da derrocada final da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, que declarou a suspeição do ex-juiz Sergio Moro e anulou todas as condenações e processos contra ele em Curitiba. A desgraça da Lava Jato reabilitou Lula perante correntes majoritárias do eleitorado que até pouco não votariam nele?

R. Sim, ele vem com muita força, principalmente porque a narrativa dele prevaleceu em relação à Lava Jato. Ele sempre disse que estava sendo perseguido e vítima de uma injustiça e, no final, o ministro Edson Fachin, primeiro, e o pleno do STF depois, confirmaram isso. Ao mesmo tempo não podemos esquecer que isso acontece em um momento em que a administração do Bolsonaro está no seu pior momento de avaliação, é uma confluência.

Quando Lula faz um discurso acenando para diversos setores diferentes da sociedade com muita responsabilidade, ele se coloca como viável para ser o candidato de todos. Ele mexe com todo o xadrez eleitoral porque amplas parcelas da população lembram de forma carinhosa da administração dele. Lula deixou a presidência com uma popularidade altíssima, entregou bens e serviços públicos para uma parcela significativa da população que agora está desassistida, e entra como candidato sendo comparado com a administração caótica do atual presidente. Está todo mundo vendo as pessoas morrendo deliberadamente por omissão e ação dele na condução da pandemia. Ele se mostra uma liderança absolutamente destrutiva, incapaz de conduzir o país a um bom caminho.

P. Ou seja, o presidente vai ter muita dificuldade para se reeleger?

R. As pesquisas mostram que o Bolsonaro não está nem garantido no segundo turno. Eu acho que ele passa, mas a situação não é confortável. O que conta a favor dele é que ele tem uma base muito coesa desde 2018. É sobre ela que ele se apoia. População do interior, zonas rurais e cidades pequenas, homens brancos que se declaram empresários, com o recorte de renda de 2 a 5 salários mínimos, evangélicos, nesse segmento ele é muito forte. Porém, é isso que está mostrando o Datafolha, esse perfil responde por aí no máximo 25% do eleitorado. Ele vai tentar segurar esse eleitor em uma corrida contra o tempo, mantendo esse grupo ocupado e coeso fazendo o que faz, falando e fazendo essas loucuras. O problema para ele é que o resto da população, os eleitores de esquerda em geral e os antipetistas, estão se juntando contra ele.

Em uma escala ideológica, o Bolsonaro conseguiu colocar todo mundo à esquerda. Ele manobra o debate de uma forma que é ele contra o resto, e de certa forma os adversários têm que aceitar esse jogo e se unir para conseguir derrotá-lo. Se tentarem se diferenciar com ataques entre si, ele ganha. E, para ocorrer essa união, quem é de direita e de esquerda tem que focar no que os une, tentar soluções e acordos pactuados de centro, que não vão atender a nenhum dos grupos plenamente, mas vão incorporar as demandas essenciais de cada um. Um exemplo de quem percebeu isso cedo foi o governador de São Paulo, o tucano João Doria. Olha o caminho que ele percorreu de 2018 até aqui para se afastar de Bolsonaro, caminhando em direção à esquerda. Hoje está mais ao centro do que jamais esteve na escala ideológica. Bolsonaro obrigou os partidos e as lideranças de direita a tomarem mais posições a esquerda, o que os aproximou de fato desses setores. Então ele está ficando cada vez mais isolado politicamente, com uma grande articulação contra ele.

P. O que pode virar o jogo a favor dele?

R. O presidente tem cerca de 25% das intenções de voto. Se conseguir manter isso até a eleição, vai para o segundo turno e, uma vez lá, pode ganhar sim. Até lá, não podemos esquecer que ele tem a caneta de presidente na mão. Não acho impossível por exemplo ele começar a injetar dinheiro em grupos específicos com um programa de renda focalizada. No ano passado, com o auxílio emergencial, isso funcionou muito bem. Assim que o auxílio começou a sair, a popularidade dele subiu, imediatamente. Existe um componente econômico no voto muito importante. Se o eleitor sente que o Governo melhora a vida dele, sente impacto, vota a favor. O que é esse orçamento paralelo que veio à tona recentemente? Não deixa de ser uma tentativa disso. Hoje ele não teria chance, mas não dá para ter certeza que essa situação não muda até o ano que vem.

P. Lula é o candidato certo para liderar uma possível frente ampla? Não existe muita rejeição a ele?

R. Tem um fator adicional aí. Bolsonaro está presente todos dias na vida das pessoas, que são bombardeadas com declarações, ações, políticas do Governo, que sempre remetem a ele. É natural, afinal é assim com o presidente da República. Isso tem uma importância muito grande. Lula, por outro lado, consegue construir a imagem dele longe dessa atenção toda, a partir de uma campanha eleitoral. Então as pessoas não só têm uma lembrança melhor dele do que a realidade de hoje com Bolsonaro, tem a narrativa vitoriosa sobre a Lava Jato, que era o grande empecilho, e tem tempo para reconstruir a imagem dele com esses ativos até a eleição. Ele não precisa se expor da maneira que o Bolsonaro se expõe porque ele não é o presidente da República. Isso tudo facilita muito a viabilidade do Lula como candidato. É um cara que pode puxar outros grupos que estão na oposição ao Bolsonaro para ele.

P. Essa tendência de convergência é factível “no dia D, na hora H”?

R. Esse almoço não veio à toa, não foi aleatório. É uma clara tentativa de mostrar a união de dois representantes máximos e antagônicos de um passado recente que contrapõe de uma maneira muito forte o presente. FHC, que não é candidato, na hora em que aparece desse jeito com o Lula, que é praticamente candidato, endossa um voto nele. É melhor algo antigo e conhecido, que mesmo com todos os defeitos é confortável e confiável, do que o presente caótico e o futuro tenebroso que o adversário, no caso o presidente Bolsonaro, oferece.

Se eles chegarão a ponto de articular uma chapa, por exemplo com o Tarso Jereissati como vice do Lula, não sei. Existem muitas diferenças entre o PT e o PSDB, e principalmente nos seus grupos internos, mas a movimentação e toda conversa em torno disso mostra que é uma demanda ampla da sociedade, e os partidos e atores políticos estão ouvindo essa demanda e se movimentam para tentar atender. O recado é o seguinte: queremos tirar o Bolsonaro do jogo juntos, seja no primeiro ou no segundo turno.

P. Lula é hoje o único capaz de derrotar Bolsonaro?

R. Até o momento, sim. Lula é o único candidato viável capaz de derrotar Bolsonaro ano que vem, não existe terceira via. Não apareceu mais ninguém até agora com potencial de crescer tanto. Bolsonaro é muito competente em manter sua base fiel, e Lula, por sua vez, suga o restante. A volta dele muda o centro de gravidade da política brasileira, e, para romper com essa força de gravidade, em tão pouco tempo, é muito difícil, não vejo nenhum outro nome com esse potencial até agora.

P. Nem um nome da chamada “terceira via”? Tem vários nos balões de ensaio por aí… pode mudar algo nesse balanço de forças?

R. Qual nome é viável? A questão é, a esta altura, se existisse algum, já teria aparecido e se consolidado. Não existe candidato de terceira via com envergadura para disputar com o Lula e o Bolsonaro, esse é o ponto. Passaram dois anos de Governo Bolsonaro com essa discussão de construir uma terceira via, e cadê algo sólido? Falta praticamente um ano pra começar a campanha eleitoral…

P. Ciro Gomes (PDT) não teria esse potencial? Ele tem tentado um reposicionamento este ano, encarnando o papel do candidato “contra tudo o que está aí” justamente para tentar fisgar aquele eleitor de centro e centro-direita que não tem simpatia por Lula e está decepcionado com Bolsonaro. Pode funcionar?

R. No momento, o que a gente vê é que isso não está funcionando. Ele tem angariado uma rejeição grande de eleitores mais à esquerda, ao mesmo tempo que hoje não mostra vigor para cooptar essa parte da direita e centro-direita que ele quer. Hoje esse nicho está muito fragmentado e é disputado por muita gente ―João Doria, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, o apresentador Luciano Huck, se vier… Enfim, nesse eleitorado existe um espaço menor para o Ciro entrar. Outro complicador é ele sair da esquerda dessa forma, afinal ele construiu a carreira inteira dele dentro desse ideário. É uma opção um pouco radical, que não parece a melhor alternativa. Ele deve saber da estratégia dele melhor que a gente, mas não consigo ver isso dando certo.

Nos últimos meses, aqui no Rio, vimos os deputados federais Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e Rodrigo Maia (DEM-RJ) conversando sobre união. Isso, até pouco tempo atrás, era impensável, é muito simbólico. Esses movimentos indicam uma predisposição de composição muito grande, a ver o que é concretizado na prática. Por isso o movimento do Ciro é tão perigoso para ele, está fazendo um movimento contrário a essa tendência de aproximação entre os opostos. Ele acredita que assim vai conseguir manter a fatia de eleitores que tem e conquistar uma fatia nova do eleitor conservador, mas na realidade ele está perdendo o eleitor de esquerda que ele tem, pelo menos neste primeiro momento, e vai encontrar muita dificuldade de achar um eleitor de direita disposto a levá-lo ao segundo turno.

P. Ainda cabe uma aventura como a eventual candidatura de Luciano Huck?

R. Essa janela de oportunidade era excelente em 2018, porque foi a eleição da nova política, entrou um monte de gente de fora, os chamados outsiders. Ele seria uma excelente opção para o eleitor conservador que votou no Bolsonaro em 2018. Teria sido muito mais palatável e poderia ter ganhado. Lula e o PT estavam muito desgastados com a Lava Jato, os outros partidos também, não podemos esquecer que o PSDB também já tinha sido bastante atingido àquela altura. Você tinha uma janela de oportunidade ali para o Luciano Huck que não parece estar aberta agora. O retorno definitivo de Lula mexeu demais com o tabuleiro político da eleição do ano que vem. Quem pensava em sair candidato agora está mais tímido. Não vejo uma candidatura dele ter o vigor necessário nesse cenário com Lula e Bolsonaro. Até o momento ele anda muito tímido, não vejo ele afim de arriscar muito, de se expor. Assim não vai dar certo, essa bola parece estar murchando.

P. Lula tem que buscar de novo o voto evangélico se quiser vencer essa eleição?

R. Em algum momento ele vai ter que falar sobre uma composição com essas lideranças. No discurso dele no sindicato, ele fez um aceno aos evangélicos. Não podemos esquecer que o vice do Lula era o José de Alencar, um empresário evangélico. A composição com esse eleitorado sempre esteve presente em Lula, muito antes do Bolsonaro, e me parece um caminho natural a ser perseguido não só por ele, mas por qualquer político que se pretenda majoritário.

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