Em junho, tudo indica, o país ultrapassará o marco macabro de meio milhão de mortes por Covid-19. Não falta, contudo, quem se apresse em vaticinar que a memória do povo é curta e que, com o avanço da vacinação e a retomada da economia, tamanha devastação será logo esquecida, a ponto de acabar não tendo maior relevância na campanha presidencial do ano que vem.
Sobram razões para discordar de tal vaticínio. Muito pelo contrário, o mais provável é que o trauma da Covid-19 esteja fadado a ter importância central na disputa presidencial de 2022, não só pelo rastro de letalidade como pelo desgaste emocional do eleitorado, ao cabo de uma pandemia tão longa.
E, sobretudo, porque salta aos olhos que as proporções do desastre sanitário que se abateu sobre o país foram amplificadas, em grande medida, pela incúria escancarada com que o governo se permitiu lidar com a pandemia.
Não é surpreendente que Jair Bolsonaro já tenha percebido tudo isso com perfeita clareza. E que esteja alarmado com a possibilidade de que a indignação generalizada com a devastação da pandemia inviabilize o projeto da reeleição.
A fragilidade da posição do Planalto ficou nitidamente exposta nos depoimentos do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na CPI da Pandemia. Basta ter em conta quão pífia era a melhor linha de defesa que os advogados conseguiram inculcar no general, ao “treiná-lo” para o depoimento no Senado.
Qualquer manifestação comprometedora feita em redes sociais ou em conversas com correligionários gravadas em vídeo, seja do presidente, seja do ministro, deveria ser peremptoriamente descartada como “coisas de internet”. Um argumento que deixou de fazer sentido há mais de 90 anos, com o advento da Era do Rádio.
A ideia é que, a menos que tenham dado lugar a documentos firmados em papel timbrado com as Armas da República, manifestações públicas sobre o combate à pandemia, por mais comprometedoras que possam ter sido, não devem ser levadas a sério.
Não importa se o presidente, visivelmente contrariado, declarou em público, com todas as letras, que mandara cancelar o protocolo de intenções, entre o Ministério da Saúde e o governo de São Paulo, para compra de vacinas. E se, em seguida, Pazuello se prontificou a esclarecer, também em público, que “é simples assim, um manda e o outro obedece”.
Ao longo dos últimos dois anos e meio, Bolsonaro protagonizou um espetáculo patético de democracia direta, em que se permitiu governar pelas redes sociais e por conversas com admiradores, gravadas diariamente em vídeo, no cercadinho do Planalto.
É assim que o presidente tem explicitado sua postura sobre amplo leque de questões importantes discutidas no governo. Que tem fixado diretivas dentro do governo. E que tem prenunciado demissões de longa fieira de ministros e ocupantes de cargos de segundo escalão.
No governo Bolsonaro, tais manifestações sempre foram tratadas, pela mídia e pela opinião pública, com a mesma credibilidade que, em outros governos, se atribuía a pronunciamentos do presidente à Nação. De repente, da noite para o dia, com o embaraço gerado pela instauração da CPI, tudo isso vem sendo reclassificado às pressas como “coisas de internet”, a que não se deveria dar maior importância.
Declarações do Presidente da República não são palavras ao vento. Têm peso e consequências. Muitas vezes, nefastas. Acumulam-se, agora, evidências cada vez mais sólidas de que municípios em que Bolsonaro teve votação mais maciça vêm sendo muito mais devastados pela Covid-19.
Não chega a ser surpreendente que, onde o presidente tinha mais prestígio, suas recomendações irresponsáveis sobre como se comportar ao longo da pandemia tenham sido seguidas mais à risca. “Coisas de internet”.
É mais que natural que Bolsonaro esteja assombrado com o inevitável acerto de contas que ainda terá de fazer com o País, em decorrência de seus desmandos no enfrentamento da pandemia. O presidente bem sabe que não terá como varrer meio milhão de mortes para debaixo do tapete.
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