Que o governo de Jair Bolsonaro não é liberal na economia, todos já sabem. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, queixou-se recentemente da falta de “aderência” a seu projeto de redução radical do Estado, anunciado na campanha eleitoral de 2018 por Bolsonaro e claramente frustrado após mais de dois anos de mandato.
A cada dia que passa, no entanto, o governo tampouco consegue ser o campeão dos valores conservadores, conforme também prometido por Bolsonaro nos palanques.
O presidente não é conservador; é apenas reacionário. O conservadorismo não se opõe a mudanças e reformas, como faz Bolsonaro, e sim às rupturas revolucionárias, especialmente aquelas motivadas por utopias que só podem resultar em autoritarismo e na anulação do indivíduo. Ademais, o conservadorismo defende o respeito às instituições democráticas e luta por sua estabilidade; defende a liberdade política e econômica, dentro da ordem constitucional; defende a igualdade de todos perante a lei, que é o verdadeiro lastro da estabilidade; defende a política como a “arte do possível”, fruto de ampla negociação; e, finalmente, defende a coesão social baseada em valores morais comuns, sobretudo o respeito, a responsabilidade e a honestidade.
Lamentavelmente, Bolsonaro viola esses princípios de forma sistemática desde que ganhou os holofotes da vida pública, quebrando o decoro sem constrangimento, tomando a coisa pública como se fosse privada e atacando os pilares da democracia.
Poucas vezes na história brasileira as instituições foram tão vilipendiadas por um presidente da República. Poucas vezes um chefe de Estado foi tão indiferente às leis e à Constituição, considerando-se frequentemente acima delas. Poucas vezes um governante desprezou tanto o diálogo político, demonizando a oposição e menosprezando partidos. E poucas vezes um presidente transgrediu de forma tão desabrida os valores morais comuns da sociedade, especialmente ao rejeitar a responsabilidade por seus atos e omissões e ao ofender e ameaçar quem o contesta.
Nesse cenário, a linguagem chula de Bolsonaro é, por incrível que pareça, o menor dos problemas – embora, frise-se, só isso já bastasse para constranger os movimentos que se dizem conservadores e que apoiam o presidente, notadamente os religiosos.
Bolsonaro julga ter recebido dos eleitores o poder de fazer o que bem entende – e, se as instituições republicanas e os valores morais se tornam obstáculos ao exercício desse poder sem limites, pior para as instituições e para os valores.
O presidente já se confundiu com a Constituição (“eu sou a Constituição”), um ato falho que traiu seu desejo de transformar sua vontade pessoal em lei. E anunciou, desde a campanha, que a “verdade” não era a realidade, mas uma revelação mística que ele profetizou nos palanques, transformando em slogan eleitoral o versículo bíblico “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8:32).
No seu governo, vale o Führerprinzip, isto é, o princípio da supremacia do líder sobre qualquer outra consideração, pois o presidente julga encarnar o “povo”. Por essa razão, demanda-se lealdade absoluta a Bolsonaro, seja de seus ministros, seja de seus eleitores, e o que quer que o presidente estabeleça como verdade deve ser aceito sem contestação.
Assim, a verdade dos fatos, cujo respeito é princípio central no credo conservador, não tem lugar no mundo bolsonarista. Nesse universo fantástico, o presidente não pode ser refutado quando declara não ter nenhuma responsabilidade sobre os mais de 435 mil mortos pela pandemia de covid-19, tampouco pela desastrosa situação econômica, e muito menos pela morosidade das reformas e das privatizações. Questionar Bolsonaro equivale a violar um mandamento.
Isso obviamente nada tem a ver com o espírito do conservadorismo cuja representação Bolsonaro reivindica. É, ao contrário, uma violação explícita. Os conservadores que se alinham a Bolsonaro supostamente por afinidade de valores deveriam repensar esse apoio, pois correm o risco de se confundir com a desonestidade bolsonarista.
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