domingo, 16 de maio de 2021

OS NOVOS MALES

Cacá Diegues, O GLOBO

O óleo “A redenção de Cam” foi pintado em 1895. Um exemplo de nosso realismo romântico, na passagem do século XIX para o XX, esse quadro é a obra mais conhecida de Modesto Brocos, pintor espanhol naturalizado brasileiro. Nele, uma pequena família celebra o nascimento de um bebê, com o pai mestiço orgulhoso do filho, a mãe mulata lhe dando o carinho de seu colo e a avó negra dando graças aos céus pelo neto branquíssimo. “A redenção de Cam” ganhou a medalha de ouro na Exposição Geral de Belas Artes de 1895 e foi usado depois, por João Baptista de Lacerda, como ilustração de seu famoso ensaio científico, no I Congresso Mundial das Raças, de 1911, em Londres.

O título do quadro se refere aopersonagem bíblico que, filho de Noé, trai o pai e é amaldiçoado pelo patriarca, sendo condenado a viver sozinho e longe dos irmãos, em outro continente. No Livro do Gênesis, Noé se refere ao filho maldito como “o servo dos servos”. Ele teria, segundo as teorias racistas da época, condenado os descendentes de Cam à cor negra e à escravidão.

A Bíblia e o quadro de Brocos serviram às teses dos que, a partir da Lei Áurea, pregavam o embranquecimento da população, do qual João Baptista de Lacerda era um dos principais e mais respeitados defensores. Além de acoplar à moda de eugenia numa Europa de emigrantes, era preciso, segundo Lacerda, fazer o Brasil esquecer a fatalidade de que pessoas de pele escura tinham sido sempre propriedade das de pele clara.

A tradição sempre fora a de que pretos e brancos não se entenderiam nunca. Desde que os navios negreiros partiam das praias africanas, os senhores brancos a bordo temiam levantes, assim que os escravizados se dessem conta de seu número muitíssimo superior. E corria, entre os acorrentados, histórias horripilantes sobre brancos canibais que encontrariam na América. Acho que só Antonio Vieira, esse lúcido precursor da democracia, ainda tinha coragem de dizer para eles, em 1633: “Sabeis todos os que são chamados escravos, que não é escravo tudo o que sois”.

Mais uma vez, a história acabou sendo feita pelas vítimas dela, os escravizados que foram formalmente libertados sem que lhes dessem nenhuma perspectiva de nada. A Lei Áurea havia lhes dado a garantia da liberdade que sempre lhes faltara. Mas não lhes havia produzido nenhum meio de tirar proveito dela.

Desde que a luta objetiva pela libertação tomara corpo, com líderes como Luís Gama ou André Rebouças, os senhores de terras se organizaram para exigir do imperador uma indenização para eles próprios, pobres vítimas da Abolição, pelo prejuízo que essa lhes causava. Enquanto isso, certos do que ia acontecer com as leis do país, tratavam de negociar acordos de trabalho com países da Europa, agravando ainda mais a ausência de ocupação para os que tinham sido escravos.

Quando a Lei Áurea foi finalmente assinada, os afrodescendentes comemoraram com muito carnaval na rua. Mas logo se viram expulsos até de suas senzalas, propriedades dos senhores que precisavam adaptá-las para os imigrantes europeus. Agora só tinham como espaço de trabalho as estradas vazias ou as ruas das cidades. E trataram de inventar, para o bem e para o mal, a primeira cultura urbana do país.

O Brasil foi o último grande país ocidental a decretar o fim constitucional do trabalho escravo. Mesmo assim, depois de fazê-lo, ainda não teve vontade ou coragem de tratar dos novos problemas que essa ação do bem provocou. Desde então, os afrodescendentes vêm se organizando e atraindo o resto da população, independente de cor ou raça do parceiro. Hoje, quando já representam mais da metade da povo brasileiro, sua voz ecoa poderosa. Vale a pena comemorar, mais uma vez, a Lei Áurea e a real redenção de Cam. Viva o 13 de Maio!

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