Caro leitor,
O general Eduardo Pazuello resolveu aloprar? Ou chutar o balde? Foi o que perguntou à coluna um general da reserva. O intendente mais conhecido do Brasil chegou ao topo da carreira para os integrantes do Serviço de Intendência do Exército. Estes só avançam até a terceira estrela de general de divisão, ao contrário dos colegas das Armas, como a Infantaria e a Artilharia, que podem chegar à quarta estrela. O homem que blindou o presidente Jair Bolsonaro na CPI da Covid não tem, portanto, o temor de ver a carreira interrompida em função de alguma patuscada ou infração disciplinar.
E o Regimento Disciplinar do Exército classifica como a primeira de suas infrações “faltar à verdade ou omitir deliberadamente informações que possam conduzir à apuração de uma transgressão disciplinar”. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) apontou 14 oportunidades em que isso ocorreu no depoimento do militar à CPI da Covid. Não seria preciso, portanto, descer o dedo pelo regulamento até a transgressão nº 57 para censurar o comportamento do general.
Mas o que diz a transgressão 57? Ei-la: “Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”. Pois foi em flagrante desrespeito à norma que Pazuello compareceu no domingo ao ato bolsonarista do Aterro do Flamengo, no Rio. Quis desculpar-se o general com os colegas, admitiu o erro, mas a única coisa que muitos dos seus colegas dizem que lhe resta a fazer é apresentar sua passagem para a reserva a fim de se dedicar à política.
Seja quem for e quando assumir a Presidência após Bolsonaro deixar o cargo, o futuro presidente devia ler a carta escrita pelo general Cordeiro de Farias a Juscelino Kubitschek, nos primeiros dias da Presidência do líder do PSD. Diante do quadro de divisões nas Forças Armadas, o veterano general e político – era então governador de Pernambuco – aconselhou o presidente a nomear civis para dirigir os ministérios militares. Lembrou os exemplos dos ex-ministros da Guerra Pandiá Calógeras e da Aeronáutica Salgado Filho.
Dizia querer pacificar as Forças Armadas – muitos diriam que queria se vingar do general Henrique Lott, que derrubara dois presidentes para garantir a posse do eleito, Juscelino. Cordeiro tinha a seu favor, no entanto, um fato que ele mesmo relata na carta: “sempre rendeu aos adversários, quando nobres e valorosos, os tributos maiores de sua admiração, sem se deixar perturbar, no frio julgamento dos homens, pelo entusiasmo da causa”. E, de fato, sempre nutrira respeito pelo líder comunista Luiz Carlos Prestes, com quem participara do “movimento militar de mais longa duração – a coluna Miguel Costa-Prestes” de nossa República.
O bolsonarismo e o deboche com que trata o respeito às leis e decretos – e não somente o Estatuto dos Militares e o Regimento Disciplinar – tornaram urgente, para os que se opõem a Bolsonaro, a nomeação de um civil para a Defesa. Não apenas para a afirmação do Poder Civil na democracia, mas também como forma de pacificar as Forças Armadas, cada vez mais divididas diante do atual governo. Ou diante do espetáculo que Pazuello proporcionou gratuitamente ao País.
Após o passeio do general, surgiram as especulações. Houve militar que defendeu punição dura ao general. Outro lamentou o constrangimento que Pazuello trazia ao Exército. Também se voltou a falar que o intendente devia ir para a reserva. Um general de brigada disse que o Comando devia ter feito isso, mas não teria tido peito. Decreto de 2016 delega aos comandantes de Força a competência para a transferência para a reserva remunerada de oficiais e subalternos. Portanto, caberia ao chefe do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, a decisão de se livrar do intendente.
Tudo seria mais fácil, se o homem não pertencesse à confraria da Brigada Paraquedista, onde conheceu o presidente nos anos 1980. Comandantes precisam guiar suas instituições de tal forma que o exemplo forme a consciência de seus subordinados. Não só. Nem Paulo Sérgio está acima do Regulamento Disciplinar. E este veda ao comandante deixar de punir o subordinado que cometer transgressão, “salvo na ocorrência das circunstâncias de justificação previstas neste Regulamento”.
Essas circunstância são a prática de ação meritória ou no interesse do serviço, da ordem ou do sossego público; a legítima defesa; a obediência a ordem superior; a necessidade de compelir o subordinado a cumprir rigorosamente o seu dever; qualquer motivo de força maior ou por ignorância, desde que plenamente comprovada. A não ser que se reconheça um caráter ingênuo ao ex-ministro da Saúde ou a observância de ordem dada pelo presidente da República nem é preciso dizer que nenhuma dessas circunstâncias estavam presentes quando o general subiu no palanque. Pazuello, portanto, não pode justificar-se.
Não é demais ouvir as palavras do intendente aos apoiadores do presidente no Aterro: “Fala, galera! Eu não ia perder esse passeio de moto de jeito nenhum! Tâmo junto, hein! Parabéns a vocês, parabéns à galera que taí, prestigiando o presidente. O presidente é gente de bem!” O general mostrou mais uma vez dominar o linguajar da internet, como no famoso “um mando e o outro obedece”. Tudo seria jogo de cena, onde a compostura nada vale. Enquanto o general conta lorotas na CPI e se diverte no fim de semana com o capitão presidente, 440 mil morreram antes, durante e depois de sua passagem pelo Ministério da Saúde.
Dias antes do passeio dominical de Pazuello, o general Augusto Heleno prometera na Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara a punição a militares da ativa que participassem de manifestações. Não resta ao Comando do Exército, em nome da observância das leis, da honra e do pundonor militares alternativa diversa da punição do general influencer, sob o risco de que a leniência seja vista como sinal verde para arruaças nos quartéis, com sargentos e tenentes criando comitês eleitorais como verdadeiros militantes políticos vigiando e denunciando seus chefes aos integrantes do partido fardado que domina o Planalto.
Bolsonaro pode querer proteger o amigo, dizer que o homem cumpria ordens. Não importa. Ou Pazuello é punido ou o Comando do Exército e o ministro-chefe do GSI se desmoralizam. Os generais do Planalto retiraram o gênio Bolsonaro da garrafa em 2018 e agora têm de se haver com a criatura. É possível que se dê a Pazuello só uma advertência, que constará em sua ficha; punição que o deboche bolsonarista verá como uma medalha. No entanto, mesmo os que o defendem deviam se perguntar: esse comportamento seria tolerado se ele estivesse no palanque de Lula? A praça pública não pode tornar-se refúgio de aloprados. Nem há caminho mais rápido e seguro para o arbítrio e a baderna do que encher os palanques eleitorais de generais da ativa.
*Marcelo Godoy é repórter especial. Jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).
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