Um Estado Democrático de Direito deve ser capaz de prevenir, investigar, perseguir e punir ações criminosas. Não há civilidade, tampouco paz, onde reina a transigência com condutas que agridem bens jurídicos essenciais de uma sociedade. Esta é a razão da legislação penal: proteger elementos fundamentais da vida em sociedade.
Ao mesmo tempo, o Estado é muito mais amplo do que seu sistema penal, cuja atuação é sempre subsidiária. A imensa maioria das questões de uma sociedade não está na esfera penal. Há uma vastíssima gama de assuntos, desafios e problemas que não são resolvidos por mera proibição e punição de condutas. O encaminhamento desses temas deve ser dado pela política.
Na seara política, as soluções não são binárias: proibir ou permitir, punir ou não punir. Os temas possuem variadíssimas possibilidades, e a definição do caminho a ser trilhado não é dada por uma regra prévia. As soluções devem ser fruto de estudo, diálogo, debate, negociação e também concessões, muitas concessões.
Na política, não existem fórmulas perfeitas. O que se tem são caminhos possíveis, necessariamente imperfeitos, que, ao longo do tempo, podem e devem ser testados, corrigidos e aperfeiçoados. Por isso, num Estado Democrático de Direito, é fundamental o funcionamento dos Poderes Legislativo e Executivo. Sempre há questões políticas a serem decididas e essas decisões devem ser adotadas por representantes escolhidos pelo voto popular.
O Judiciário é imprescindível para fazer com que a lei seja aplicada, mas ele sozinho não é suficiente. Num regime de liberdade, o encaminhamento das questões, desafios e problemas enfrentados pela sociedade não é dado – repita-se – por simples aplicação de regras prévias, mas por um contínuo trabalho político.
No entanto, observa-se atualmente um paulatino estreitamento do campo da política, junto com o avanço – muitas vezes, verdadeiro predomínio – das questões criminais na seara pública. Tal fenômeno ficou em evidência na Operação Lava Jato. Foram muitas e insistentes as tentativas para que o trabalho investigativo-judicial proporcionasse soluções políticas ou mesmo que substituísse o labor político.
Agora, o que resta da Lava Jato já não está em destaque, e seu objetivo de refundar a política nacional é não apenas distante, como rigorosamente fantasioso. No entanto, o fenômeno de asfixia da política por questões penais permanece. Na seara pública, não existe debate sobre questões políticas. Não se vê uma proposta para o futuro, ou mesmo para o presente. O que se tem é o aparato estatal submerso em questões e investigações criminais.
A lei penal precisa ser aplicada, e quem praticou crime deve ser contido e punido. No entanto, a aplicação da lei penal, por mais rigorosa que seja, não dará solução aos problemas nacionais. É preciso cuidar da saúde e da educação da população, com propostas adequadas às circunstâncias atuais. É preciso restabelecer as condições para o crescimento econômico e a retomada do emprego. É preciso oferecer respostas urgentes para a fome e a pobreza, bem como buscar caminhos efetivos para a redução das desigualdades sociais.
Tudo isso, que é absolutamente necessário e urgente, não será alcançado por meio de operações da Polícia Federal, inquéritos supervisionados pelo Ministério Público ou ações penais. A política é o único caminho capaz de oferecer respostas a essas questões.
Nos tempos da Lava Jato, ganhou notoriedade a atuação voluntarista de alguns procuradores. É preciso reconhecer, no entanto, que a asfixia da política nunca foi um fenômeno causado apenas pelo Ministério Público. As administrações petistas levaram a política para o crime, como se viu no mensalão e no petrolão. Agora, Jair Bolsonaro impõe ao País trajetória semelhante. Em vez de oferecer propostas políticas, seu governo suscita a cada dia novos conflitos e novas investigações criminais.
É preciso investigar e punir o crime, mas preservando a política – o que significa, entre outras coisas, afastar da política quem é mais afeito ao crime do que à política.
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