terça-feira, 17 de agosto de 2021

AFEGANISTÃO ENTREGUE À PRÓPRIA SORTE

Editorial O Estado de S.Paulo

No dia 14 de abril, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, confirmou que levaria a cabo a decisão tomada por seu antecessor, Donald Trump, de retirar as tropas americanas do Afeganistão. “Sou o quarto presidente a liderar a presença de soldados americanos no Afeganistão. Eu não iria, como não vou, entregar esta guerra para um quinto”, disse Biden em pronunciamento à nação.

No início de julho, o democrata afirmou que a guerra era “invencível” e fixou o dia 31 de agosto como prazo final para o último soldado americano deixar o país da Ásia Central. “Eu não enviarei outra geração de americanos para esta guerra sem nenhuma expectativa razoável de se chegar a um resultado diferente (do alcançado até agora)”, reforçou Biden.

As palavras e as ações do presidente americano expressam o sentimento de dois terços da população de seu país, cansados do conflito mais longevo da história militar dos Estados Unidos. Lá se vão quase 20 anos desde a deflagração da Operação Liberdade Duradoura, em 7 de outubro de 2001, menos de um mês após os infames atentados do 11 de Setembro. A pretexto de impedir que o Taleban desse guarida aos terroristas da Al-Qaeda ou permitisse que o território afegão servisse como base de treinamento para os radicais islâmicos, o então presidente George W. Bush ordenou que as tropas dos Estados Unidos ocupassem o Afeganistão sem data para sair de lá.

No início de dezembro daquele mesmo ano, o Taleban perdia o controle sobre Kandahar, a última grande cidade que ainda dominava. Mas a derrota militar dos radicais nem de longe significou o florescimento de uma vigorosa democracia no país asiático, nem tampouco o prenúncio de novos tempos de paz. Logo ficou claro que só haveria, de fato, uma “liberdade duradoura” enquanto as forças americanas permanecessem no Afeganistão.

Este talvez tenha sido o principal erro de avaliação de Biden ao levar adiante o plano de retirada das tropas americanas, que se revela precipitado. A nesga de estabilidade que havia no Afeganistão dependia, fundamentalmente, da presença dos militares americanos no país. Não é por outra razão que eles lá estão há quase duas décadas. Bastou que os soldados da coalização começassem a ir embora para que o Taleban iniciasse sua marcha triunfal até Cabul.

Outro erro é a crença entre os americanos e seus aliados de que as forças militares e policiais afegãs estavam preparadas e, sobretudo, determinadas a defender seu país por conta própria contra os radicais islâmicos, em nome de um governo que pouco fez por eles. Os Estados Unidos gastaram cerca de US$ 88 bilhões para equipar e treinar as forças de segurança do Afeganistão. Mas, na primeira oportunidade que tiveram para agir, estas forças ofereceram mínima resistência ao avanço do Taleban.

O anúncio da saída das tropas americanas deu azo a uma ação fulminante do Taleban para reaver os territórios outrora perdidos. Uma a uma, as mais importantes cidades afegãs sucumbiram à investida com pouca ou nenhuma resistência. Em questão de poucas semanas após o início da ofensiva, o Taleban já ocupava o gabinete do presidente Ashraf Ghani, em Cabul. Ghani fugiu do país com a mulher e dois assessores.

Biden afirmou que seu país não foi ao Afeganistão “para construir uma nação” e exortou os líderes afegãos a se “unirem e conduzirem seu país rumo ao futuro”. Nas atuais condições, as tropas americanas não deveriam deixar o Afeganistão, pois o Taleban ainda apresentava um alto grau de risco. O mais espantoso, no entanto, foi o governo americano ser surpreendido por um avanço tão rápido dos radicais islâmicos, que agora se põem a combater qualquer traço de civilização que ainda há no país.

A saída precipitada das tropas americanas do Afeganistão pode ser vista como uma derrota após longo esforço de guerra, deixa os afegãos entregues à própria sorte e, principalmente, transmite uma perigosa mensagem de insegurança a outros aliados dos Estados Unidos na região.

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