A palavra “crise” vem sendo vulgarizada há décadas entre nós, a ponto de a psique nacional ter normalizado a sensação de estarmos sempre em crise. O que costuma ser exagero retórico. Mas desta vez parece que vamos para uma crise mesmo, pois esboça-se um cenário inédito nos últimos quase sessenta anos: não há consenso sobre o método e as circunstâncias que vão decidir a luta pelo Planalto.
A aceitação consensual das normas que orientam e regulamentam a alternância no governo é talvez o pilar fundamental da paz política em regimes como o nosso. Ou seja, se os jogadores e os times não estão de acordo sobre as regras, ou sobre quem pode jogar ou não, é difícil o jogo acabar bem. Não é obrigatório que acabe mal, mas a chance é grande. Exatamente a situação agora do processo político brasileiro, a caminho da desestabilização.
A existência desse consenso fez o edifício resistir com certa estabilidade ao impeachment de Fernando Collor. Aí vieram Itamar Franco, que não podia se candidatar à reeleição, e em seguida dois nomes do “mainstream”, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Que resistiram às turbulências também por aceitar um fato: o poder não é um espaço vazio à espera do vencedor da eleição, é um prédio ocupado que troca de zelador.
Essa realidade não havia sido respeitada por Collor, nem foi em boa medida por Dilma Rousseff. Nem na largada por Jair Bolsonaro. Não significa que ele vá ter o destino dos dois, pois fez ajustes a tempo e conta, até o momento, com proteções que certa hora faltaram a ambos. Por exemplo a presidência e a maioria da Câmara dos Deputados (onde começam os impeachments), e apoio militar. E a crise agora escalou quando falta pouco para a eleição.
Este último aspecto deveria, teoricamente, oferecer a possibilidade de uma desanuviada no ambiente, e fazer os políticos voltarem-se para a preparação da disputa eleitoral. Costuma funcionar como válvula de escape. E por que não está funcionando agora? Precisamente porque falta o acordo essencial de que todos disputarão, e com as regras de agora, e quem tiver mais votos assume a cadeira no Palácio do Planalto em janeiro de 2023.
Daí que a política esteja enredada num novelo de difícil desembaraço. Hoje, Bolsonaro iria ao segundo turno e perderia de Lula. E a chamada terceira via teria os cerca de 20% que Marina Silva teve em 2010 e 2014, exatamente por ser a única “terceira via”. Num país mais próximo da normalidade, os insatisfeitos com esse cenário estariam cuidando de buscar alianças e de fixar imagens programáticas favoráveis. Não no Brasil de 2021.
Um novo impedimento de Lula tornou-se possibilidade remotíssima, após as decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito. Resta, portanto, hoje, uma vaga na decisão. Bolsonaro, enfraquecido pelos erros na condução da pandemia, mas ainda apoiado por um terço, resiste ao cerco, alimentando, por convicção ou conveniência, dúvidas sobre a higidez do processo eleitoral. Se perder mesmo a eleição, parece visualizar aí uma trincheira de resistência.
Entre os adversários, o PT e Lula começam a se movimentar, nos périplos e nas alianças. Na esquerda, o grande problema é que falta muito tempo para as urnas, mas se até lá nada mudar estará tudo bem. O difícil é nada mudar até lá, pois todos estão vendo o mesmo jogo.
Já para a terceira via é imperioso criar um fato novo, que lipoaspire ou impeça um dos dois favoritos. E quem está agora na situação mais vulnerável é Bolsonaro. Que, como se sabe, talvez tenha cometido um equívoco complicado, na política e na guerra: errar na identificação do inimigo principal, e também no diagnóstico de onde vai vir o ataque mais perigoso.
Pois ele está vindo, como era previsível e foi previsto, exatamente dos companheiros de viagem no auge da glória da Lava Jato, das jornadas de rua pela derrubada de Dilma e das decisões estratégicas na eleição de 2018.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
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