Um pouco de otimismo para começar. A chance é grande de Bolsonaro ser derrotado nas eleições, e isso há de mudar a perspectiva com que viemos encarando os últimos anos.
Talvez o domínio do bolsonarismo venha a ser enxergado, no futuro, como um desvio de loucura e de absurdo dentro de uma trajetória histórica mais ou menos constante. Um período relativamente breve de anormalidade; a interrupção de uma história que, com muitos altos e baixos, tem lá sua coerência.
Penso no governo Collor. Aquilo foi uma vergonha também —não tão grande, mas considerável. Mas o que parecia um trauma, uma piada, uma aberração (e era isso mesmo) terminou se apagando na memória.
O que ficou foi uma espécie de continuidade, com progressivos avanços e grandes tropeços, de Sarney até Dilma, passando por Itamar, Fernando Henrique e Lula. Com o passar do tempo, e com o contraste gigantesco que Bolsonaro representa, aqueles governos vão ficando mais assemelhados.
Bem ou mal, com as dificuldades de sempre, e com baixo sentido de urgência, seguiu-se o espírito da Constituição de 88, com a ampliação dos direitos sociais, maior atenção às desigualdades de renda e fortalecimento da vigilância sobre as ações do Estado.
Se pensarmos num período mais amplo, de 1930 para cá, talvez a própria ditadura corresponda a um intervalo (bem longo) num processo contínuo.
Aí, as alternativas de interpretação se abrem. Uma maneira de descrever as coisas seria pelo prisma do desenvolvimento econômico. A história, nesse aspecto, tem tanto de sucesso quanto de fracasso. De 1930 até 1980, incluindo o regime militar, o “projeto” desenvolvimentista foi obedecido, com algumas crises e soluços. Desde então, o assunto pifou, como na grande maioria das economias ocidentais.
Outra maneira de descrever é falar num longo processo de democratização política e social, com a derrota das oligarquias anteriores a 1930 se aprofundando sempre, claro que com sobressaltos, mas com um aumento constante na absorção de novos atores no sistema.
Óbvio que, desse ponto de vista, a ditadura foi um gravíssimo revés. Mas, por um longo tempo depois de seu término, cristalizou-se um consenso pela democracia. Mais do que isso, quem se identificava com o autoritarismo militar teve de recolher-se ao silêncio.
Será exagero imaginar que, dentro de poucos anos, os bolsonaristas sintam o mesmo incômodo que fascistas e nazistas depois de 1945? Continuarão, em segredo, com as mesmas ideias. Mas o processo histórico levou essa gente a fingir que nunca se entusiasmou por elas.
A hipocrisia é sempre um progresso no mundo político.
E já se vê, em toda a parte, o caso comovente. Muitos dos que votaram em Bolsonaro e puseram camisa da Seleção se adiantam, sem que ninguém lhes pergunte, para dizer que o homem é um louco, que seu governo foi uma desgraça…
Ah, percebeste agora? Fico quieto. Esse contingente de eleitores tenta limpar a própria cara; é bom sinal.
Claro que, como na Alemanha ou na Itália, sobreviverá uma minoria capaz de enfrentar todas as evidências no seu apoio ao crime, à brutalidade, à alucinação.
Mas o parêntese será fechado. E, se pensarmos no processo mais amplo, Bolsonaro não foi capaz do mesmo estrago feito pela ditadura.
O movimento negro, em sintonia com o resto do mundo, avançou muito nos últimos anos; a democratização, de um modo geral, ganhou na juventude periférica —diariamente abusada pela polícia— talvez sua maior força de expressão.
Os estudantes de esquerda deixaram de vir apenas da classe média alta. O meio ambiente e a defesa das populações indígenas deixaram de ser assuntos secundários.
Retomaremos o rumo anterior? Ideologicamente, acredito que sim. Besteiras e absurdos vão recuar para o fundo do palco.
Quanto a progressos reais, será preciso ter muito mais paciência. Uma vitória eleitoral da oposição não resolverá o pesadelo na situação econômica, e muito menos a predominância do centrão no Legislativo, do conservadorismo religioso em grande parte da sociedade, e da mentalidade assassina e torturadora na polícia e nas Forças Armadas.
O fascismo será, provavelmente, reduzido ao estado habitual de latência envergonhada. Derrotá-lo (termino pessimista) exigirá conflitos que, em geral, o país faz tudo para evitar.
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