Mais um ano escorre pelos dedos. Não foi terrível nem animador, apenas um ano de transição.
O Brasil ficou cansativo com essa interminável polêmica com o negacionismo. Primeiro, negaram o vírus, depois a gravidade da pandemia, o número de mortos, a importância da vacina e, finalmente, o passaporte vacinal.
Foi um ano de grandes debates em Glasgow, políticas ambientais decisivas nos EUA e na Alemanha, mas termina com uma dura mensagem da natureza: enchentes no sul da Bahia e o tornado no Kentucky.
A democracia foi ameaçada pelos mesmos de sempre, mas creio que, ali pelo 7 de Setembro, a ameaça se dissipou, deixando apenas alguns perplexos caminhoneiros bloqueando estradas no dia seguinte ao feriado.
Felizmente me deixaram passar para o trabalho presencial. Duplamente vacinado, caí na estrada para desenferrujar os dedos e a sensibilidade. Viver a esperança de voltar ao trabalho e preparar um salto de qualidade para o ano que entra. É o que está ao meu alcance.
Tudo o mais depende de muita gente: combater a fome, aliviar a tensão sobre a floresta e os índios, reanimar a ciência, levar um novo fôlego à cultura, apresentar uma imagem digna do Brasil lá fora.
Certamente, o passo essencial é impedir um novo mandato de Bolsonaro. Estou acostumado com suas barbaridades. Mas fiquei triste com a reação dos empresários quando ele disse que demitiu as pessoas do Iphan porque colocaram obstáculos às obras daquele senhor da Havan.
Os mesmos empresários que aplaudem a destruição do meio ambiente em nome do progresso aplaudem o desaparecimento de nossa memória e identidade. Se triunfarem em toda a linha, serei, como muitos outros, um exilado num país sem suas florestas, desmemoriado, tocando apenas a música das caixas registradoras.
Alguns poderão arrancar alguma beleza dessa paisagem desoladora, plantar uma flor no asfalto. Teriam de ter a força de um Bispo do Rosário, que, encerrado no manicômio, criou obras maravilhosas, usando o fio do uniforme de louco, tampas de garrafa.
Se Bispo do Rosário conseguiu criar algo numa atmosfera absolutamente áspera, quem sabe nós também sobreviveríamos à barbárie político-empresarial?
Mas não triunfarão. Neste momento da História, tudo indica que o povo brasileiro sabe pelo menos a quem rejeitar. A maioria não aceita Bolsonaro, e essa talvez seja a grande notícia do ano que começa logo.
Foi um ano de muitas leituras, aprendizado, biografias e romances. Nem por isso consegui transcender à banalidade do debate que o atraso nos impôs.
Não fantasio o futuro. Quem pensa com a própria cabeça sempre enfrentará consensos, partidos, corriolas. Mas nada, nada é tão difícil quanto os anos de domínio da extrema direita. No exílio, pelo menos a dor era compensada pelo fluxo de novas ideias.
Mas não há do que reclamar, exceto realizar o projeto de avanço, contar melhor as histórias, burilar as imagens, ouvir o som das ruas e estradas.
Em Atafona, São João da Barra, norte fluminense, num trabalho sobre o litoral brasileiro, conheci uma mulher de 86 anos que me disse: “Todas as manhãs deposito três rosas na Igreja Nossa Senhora da Penha, para agradecer mais um dia de vida”.
Não trabalho com escala tão curta, mais um dia de vida. Mas, olhando bem tudo o que se passou conosco, talvez valesse a pena depositar três rosas pelo ano que passou, pelo fato de termos vivido e estarmos prontos para o ano que virá. É uma maneira de desejar Feliz Natal e Ano-Novo; quem sabe no ano que vem poderemos nos aglomerar e jogar as flores diretamente nas ondas do Atlântico?
De qualquer forma, estaremos livres, trabalhando ou caminhando pelas ruas, e isso a pandemia nos ensinou que é uma das grandes dádivas da vida.
Artigo publicado no jornal O Globo em 20/12/2021
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