quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

O INDULTO QUE É UM INSULTO

Editorial O Estado de S.Paulo

O presidente da República tem o poder de conceder indulto e comutar penas. Prevista na Constituição, essa competência tem profundas raízes históricas, de natureza humanitária. Sem fixar muitos limites para essa atribuição presidencial, o texto constitucional define apenas que não podem ser anistiados “a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”.

Desde que chegou ao Palácio do Planalto, o presidente Bolsonaro tem se valido dessa competência constitucional não para promover uma ação humanitária, mas para levantar uma das bandeiras políticas mais caras ao bolsonarismo: a impunidade para policiais que atuam fora da lei. Como já tinha ocorrido em 2019 e 2020, o indulto natalino de 2021 concedeu tratamento especial a “agentes públicos que compõem o sistema nacional de segurança pública” e a “militares das Forças Armadas, em operações de Garantia da Lei e da Ordem”.

Vale lembrar que o Legislativo rejeitou a proposta do Executivo de ampliar as excludentes de ilicitude para agentes de segurança pública, mas Jair Bolsonaro insiste no assunto. O Decreto 10.913/2021 indulta policiais e militares condenados por excesso culposo cometido no cumprimento de seus deveres legais, bem como os policiais condenados “por crime culposo, desde que tenham cumprido pelo menos um sexto da pena”.

Longe de ser um tema de menor importância, o Decreto 10.913/2021 reflete com acuidade o que é o bolsonarismo. Em primeiro lugar, as disposições do indulto sobre policiais e militares têm baixíssimo efeito prático. São raros os casos que se enquadram nas situações descritas no decreto, uma vez que a Justiça brasileira tem se mostrado conivente com excessos ilegais praticados por policiais. O indulto tem finalidade simbólica, especialmente perigosa: Bolsonaro deseja ampliar ainda mais a aceitação da sociedade em relação aos excessos praticados pela polícia.

Além disso, a pretendida impunidade para policiais e militares que se excedem no cumprimento de suas funções não contribui com a segurança pública. Tem-se o efeito contrário. A população fica ainda mais desprotegida quando o Executivo federal, em vez de contribuir para que os agentes de segurança pública sejam devidamente treinados e respondam por seus atos, emite contínuos estímulos para uma atuação excessiva e violenta de policiais e militares.

O bolsonarismo não é apenas uma resposta simplista para problemas complexos, o que já seria grave. Jair Bolsonaro estimula o abuso policial, exatamente o que deve ser evitado. Sociedade protegida não é aquela em que policiais se sentem autorizados a cometer excessos. Caso contrário, o País não deveria ter dificuldades com a segurança pública, tendo em vista a alta frequência de abusos policiais.

A proteção do cidadão vem pelo cumprimento da lei, e não pelo relaxamento do Código Penal para algumas categorias profissionais. A República é regime de igualdade e liberdade, e não de privilégio e violência.

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