sábado, 29 de janeiro de 2022

A COVID NOSSA DE CADA DIA

Vicente Vilardaga, ISTOÉ

Autoridades de saúde de vários países europeus como Espanha e Dinamarca já dão o fim da pandemia como certo, como algo que acontecerá entre fevereiro e março, e propõem que a Covid-19 comece a ser considerada uma doença com a qual se pode conviver rotineiramente, como a gripe, com vacinações anuais regulares, em especial de grupos de pessoas mais suscetíveis a desenvolver casos graves. Passou-se a falar sobre um mundo em que o coronavírus vai coexistir com outras infecções respiratórias de alto risco, não mais se impondo de maneira avassaladora e nem em todos os países ao mesmo tempo.

Embora a Organização Mundial de Saúde (OMS) considere essa abordagem prematura — e é preciso lembrar que a Espanha tenta retomar sua indústria do turismo a qualquer custo –,o diretor regional da entidade na Europa, Hans Kluge, diz que “é plausível que a pandemia esteja chegando ao fim na região”. E esse fim significa que a doença sairá da fase aguda e se tornará endêmica, como parece ter se tornado na China. Será uma enfermidade com efeitos mais previsíveis do que os demonstrados desde que surgiu em 2019, mas exigindo atenção constante, com máscaras se transformando num item de vestuário com grande adesão nas cidades ocidentais e outros cuidados elementares de higiene e distanciamento se impondo culturalmente.

A mensagem promissora da Europa contrasta, porém, com a situação vivida no Brasil, onde a variante Ômicron mostra extremo vigor, sem alcançar o fim do ciclo infeccioso, e deixa qualquer projeção mais incerta. Nos últimos dias, foram registrados recordes nos números de contágio, aumentos na ocupação dos leitos de UTI e uma taxa de letalidade crescente, a maior em dois meses, com a Covid voltando a ser a principal causa de morte no País, acima dos infartos e dos acidentes vasculares cerebrais (AVC). Apesar disso, o que se percebe é que a população vacinada se preserva de casos graves e os óbitos não crescem na mesma proporção das infecções. O retorno às aulas presenciais será um teste decisivo para confirmar se realmente a doença está entrando em um estágio de declínio por aqui. Na próxima semana, as escolas públicas de 18 estados começam a receber os alunos do ensino fundamental e médio, ainda com uma proteção abaixo da esperada por causa do boicote do governo federal à vacinação infantil. Isso está levando a uma inevitável alta na internação de jovens e a uma situação crítica em UTIs pediátricas de vários estados.

“A variante Ômicron é bem menos letal e perdeu capacidade de invadir as células do nosso corpo nas partes de baixo do sistema respiratório causando pneumonias severas e mesmo danos no sistema neurológico, como vinha acontecendo. O bicho mudou a sua forma de produzir doença”, diz o médico sanitarista da USP Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “E a probabilidade de ocorrer uma variante mais agressiva do que a Ômicron, com uma taxa de infectividade tão alta, maior do que a do sarampo, é quase impossível. Duvido que ocorra”. Segundo Vecina Neto, a doença está na iminência de se tornar mais controlável, na medida em que diminui o espaço de transmissão entre as pessoas com o aumento da população imunizada pelas vacinas ou pelo contágio direto pelo vírus. Soma-se a isso uma taxa de letalidade mais baixa do que a das variantes anteriores, que se confirma em vários países atingidos pela cepa, desde a África do Sul, lugar de origem da Ômicron. “Para o vírus isso é ótimo porque ele se espalha rapidamente e não mata os hospedeiros. Seu defeito para nós é a resistência à vacina”, explica. “Mas com a diminuição das pessoas suscetíveis e com um imunizante específico para a variante ela não terá mais como avançar”. Pelo menos dois laboratórios prosperam na busca dessa vacina, a Pfizer e a Moderna, que anunciou o início dos testes clínicos com uma dose de reforço.

A vacinação salva

Enquanto a eficácia da vacinação se escancara, a gravidade das infecções decresce. Há uma relação direta e comprovada entre a imensa maioria dos casos graves na população mais suscetível, como são os idosos e as pessoas com comorbidades, e a falta de vacinação. No Rio de Janeiro, por exemplo, segundo levantamento da Secretaria Municipal de Saúde, em idosos que receberam as três doses, foram registradas 2,9 mortes em cada 100 mil habitantes entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022. A taxa aumenta para 16,2 vítimas fatais a cada 100 mil habitantes entre aqueles que receberam apenas duas doses ou a dose única sem o reforço. E alcança 78 mortes por 100 mil habitantes nos grupos que não receberam nenhuma dose ou apenas uma. A falta de vacinação também abre as porteiras para o avanço do vírus. Se o alcance do contágio pela Ômicron é de uma para 12 pessoas entre não vacinados, essa transmissibilidade cai de uma para três quando os indivíduos estão imunizados.

Um surto ou uma epidemia ocorrem quando há uma grande aceleração no número de casos de uma doença infecciosa em uma região geográfica determinada ou em um mesmo país. Na epidemia, a escala e o tempo do ciclo infeccioso são maiores. Ela se torna uma pandemia quando atinge níveis globais e é transmitida entre humanos em vários continentes. Tornar-se endêmica é o caminho contrário e implica em se tornar mais previsível, se manifestando com freqüência sazonal ou não, em determinadas regiões e com um número de casos esperado. No Brasil, agora, se verifica a coexistência da pandemia com vários surtos de doenças respiratórias viróticas. O grande número de internações em hospitais e UTIs não está só relacionado à Covid, mas também às gripes H3N2 e H1N1, subtipos da Influenza, e à Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), que normalmente se intensificam no final do outono e agora aparecem fora da sazonalidade. No Hemisfério Norte essas outras infecções são preocupação constante, endêmicas, mas previstas no inverno.

Como aconteceu em todas as ondas da Covid, a Europa antecipou, em certa medida, o que iria acontecer no Brasil. A exceção é a variante Gama, a segunda onda local, surgida na Amazônia, exclusiva da América do Sul, que elevou tremendamente a letalidade da doença no Brasil. “A terceira onda foi a da Delta, uma ‘marolinha’ que só teve efeito para ocupar o espaço da Gama”, afirma Vecina Neto. Com a Ômicron pode-se considerar que o País vive uma espécie de quarta onda, como todo o Ocidente, levando em conta os picos de mortalidade nos últimos dois anos. É esperado que a Ômicron tenha no Brasil um comportamento parecido ao que está tendo na Europa, com um ciclo de oito semanas entre o início e o fim.

Em países como Espanha, Grécia, Reino Unido, Áustria, Holanda e Irlanda apesar do aumento nos casos há queda no número de mortes. A vida nas cidades espanholas, onde o número de infectados também atingiu recordes neste mês, já vem se desenvolvendo normalmente, com bares abertos até 1 hora da manhã. Na Dinamarca, o governo propôs uma reclassificação da doença e a eliminação das medidas restritivas no país a partir de 31 de janeiro. Na quarta-feira, 26, havia 44 pacientes internados em UTIs nos hospitais dinamarqueses. A Holanda segue a mesma tendência, assim como a França. Na Áustria, onde o governo radicalizou no início de janeiro e estabeleceu altas multas para quem não se vacinasse, a tendência também é de acabar com as medidas restritivas. A OMS já detectou subvariantes da cepa, como a BA.1 e a BA.2, que atinge principalmente a Dinamarca e se mostra altamente infecciosa. Em relação à letalidade, porém, não se verifica qualquer aumento. E isso está baixando o pessimismo em relação à evolução da doença.

“A taxa de letalidade da Ômicron, em torno de 0,1% é mais baixa que a de variantes anteriores, mas é mais alta que a do vírus da Influenza”, afirma o médico Marcelo Otsuka, coordenador do Comitê de Infectologia Pediátrica da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). Em outros momentos da pandemia e em alguns locais, esse índice de óbitos atingiu 2%, até 3%. “Mas 0,1% de uma imensa população contaminada é um grande problema”, completa. Outra preocupação que impede qualquer abordagem mais flexível da doença no Brasil neste instante é a necessidade de acelerar a vacinação, agora principalmente das crianças, que não podem mais ficar fora das salas de aula. “Elas já foram muito prejudicadas nestes dois anos e é indispensável que seja vacinadas, algo que está demorando muito, mais uma vez por falta de planejamento”, diz Otsuka. Vecina Neto também defende a volta às aulas, mas não vê problemas, eventualmente, em atrasá-la uma semana para evitar o pico de contágio da variante Ômicron. Diante dessa aceleração das infecções, a Prefeitura de Belo Horizonte decidiu recuar na volta à educação presencial na próxima semana. Trata-se de uma precaução que outras cidades poderão tomar. Mas será um medida apenas temporária.

Luz no fim do túnel

A variante Ômicron foi detectada pela primeira vez na África do Sul em meados de novembro, causando aumento na ocupação de leitos de UTI mas sem levar a nenhum tipo de colapso nos hospitais do país. No começo de janeiro, fazendo um balanço do ciclo pandêmico local, o ministro sul-africano da Presidência, Mondli Gungubele, disse que “a Ômicron atingiu o pico sem implicar numa mudança alarmante nas internações”. Também não houve grande impacto na taxa de letalidade. Neste momento ela já é dominante no Brasil, onde representa entre 90% e 100% dos casos positivos. Na Europa, por conta da grande transmissibilidade, se espera que ela contamine metade da população do continente nas próximas semanas. Ainda há muita incerteza no ambiente, com o surgimento de subvariantes e o temor de que voltem a aparecer mutações incontroláveis ou uma nova cepa de alta letalidade, mas surge uma luz no fim do túnel, acesa pela própria OMS. “Assim que a onda da Ômicron diminuir, haverá imunidade geral por algumas semanas ou alguns meses, seja por causa da vacina ou porque as pessoas ficarão imunes devido à infecção, além de uma diminuição devido à sazonalidade”, afirma Hans Kluge. Tomara que ele esteja certo. É preciso considerar, porém, que os países europeus tem uma certa pressa em decretar o fim da pandemia. A economia está declinando, o turismo sofre e o custo político dos conflitos com o movimento antivacina tem sido muito alto para os governos locais. No Brasil, a adesão à vacinação é massiva, apesar da contrapropaganda do governo federal. O momento é de absoluta tensão, mas a possibilidade da Covid se tornar endêmica muito em breve se tornou bastante factível.

O X da questão

Em meio à pandemia, bilionários ficam mais ricos e desigualdade aumenta

Seja qual for o balanço final dessa pandemia, uma coisa é certa: os bilionários ficarão incrivelmente mais ricos e os pobres terrivelmente mais pobres. Um levantamento feito pela ONG Oxfam, com base nas informações da revista americana Forbes, mostra que os bilionários do mundo acrescentaram US$ 5,2 trilhões (R$ 27 trilhões) às suas fortunas entre março de 2020 e novembro de 2021. Se tinha US$ 8,6 trilhões há dois anos, no começo da contagem, agora esse seleto grupo de apenas 2,75 mil pessoas têm US$ 13,8 trilhões no bolso. Só os dez mais ricos, em uma lista que inclui Jeff Bezos, da Amazon, Bill Gates, da Microsoft, e Mark Zuckerberg, do Facebook, duplicaram suas fortunas no período de US$ 700 bilhões para US$ 1,5 trilhão. Enquanto isso, o mesmo estudo da Oxfam revela que houve queda de renda para 99% da população global no período e pelo menos 160 milhões de pessoas foram empurradas para a pobreza. Se há uma conclusão social e econômica sobre o coronavírus é que ele acentuou ainda mais a desigualdade.

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