Um fato notável dos anos Jair Bolsonaro é que ele foi tolerado; que sua popularidade tenha chegado a uma situação crítica em boa parte por motivos que teriam prejudicado até um governante que não fosse tão incapaz, imbecil e cruel.
Isso dá o que pensar a respeito dos riscos que o país corre daqui até a eleição e depois. Em condições menos azaradas, haveria mais gente, na massa e ainda mais na elite, disposta a apoiar a tirania.
Bolsonaro não foi nem ao menos processado. É ainda menor a chance de ser condenado. O criminoso mais contumaz da República, com exceção talvez de generais-ditadores, foi agasalhado pelo sistema político e pela maior parte das elites econômicas. Tem sido apenas toureado pelo Supremo.
Bolsonaro durante cerimônia de Lançamento do Programa Nacional de Prestação de Serviço Civil Voluntário, no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 28.jan.2022/Folhapress
Passados 77% de seu mandato, o celerado ainda fica quase à vontade no cargo, vez e outra alertado de que um inquérito pode ficar subitamente pronto ou ameaçar alguém do bando. Nada a ver com a via rápida da deposição de Dilma Rousseff e da prisão de Lula da Silva.
Uma vantagem de Bolsonaro é que, em três anos de mandato, sua popularidade não baixara além de 25%, limiar crítico de impeachment. Mas o celerado também jamais foi popular.
Na média das pesquisas, teve avaliação positiva maior do que negativa apenas nos cinco primeiros meses de governo e em outros cinco em 2020, quando a economia reabria, a inflação baixara e o auxílio era grande. Apenas depois de agosto veio a ser tido como péssimo por 55%; nos dois primeiros anos, a rejeição fora em média de 36%.
A partir de janeiro de 2021, o prestígio de Bolsonaro passou a diminuir quase no mesmo ritmo em que a inflação superava os salários. Decerto já tinha ficha suja. Sempre é possível especular que a inflação tenha sido a gota d’água.
A maior parte da inflação pouco teve a ver com Bolsonaro. Foi resultado de tempo ruim, que afetou agricultura e produção de eletricidade, da crise mundial de energia, da escassez de insumos industriais, dos preços da Petrobras e da desvalorização do real, a maior do mundo na epidemia.
O real costuma levar tombos extraordinários até pelas características dos mercados financeiros daqui. Mas a moeda brasileira rolou ladeira abaixo por causa da dívida pública alta, talvez sem limite depois do choque da epidemia.
A contribuição marginal de Bolsonaro veio do fato de o governo não ter rumo econômico, de vestir uma fantasia palhaça sinistra de reformas e criar tumultos (como comícios golpistas). A zorra derradeira foram o 7 de Setembro golpista e a derrubada do teto de gastos de modo picareta e inepto, que provocou disparada de juros. Mas o grosso do dinheiro tinha dado o fora antes.
Enfim, o tumulto permanente e a ralé que Bolsonaro nomeou para o governo devem ter alimentado a incerteza que solapou a despiora econômica rápida que ocorria até o início de 2021.
Sim, a inflação ganhava fácil a corrida de salários mirrados por causa também de problemas estruturais, do crescimento cronicamente baixo, piorados pelo trauma de anos de depressão do PIB e precarização do trabalho. Há agora quase tanta gente trabalhando quanto em 2019, mas ganhando menos, em empregos tão improdutivos e inseguros quanto os do fundo da recessão de 2016.
Bolsonaro nem ao menos é pragmático, mas líder de seita, déspota ensandecido. Faz questão de levar adiante seu plano reacionário, mortífero e discriminatório mesmo que perca votos. É isso que a maior parte da elite aceitou em troca de umas ditas "reformas" e de colocar o povo na coleira (com ameaça de violência militar ou miliciana). A inflação talvez tenha nos salvado. Os famintos e os mortos da peste serão nossos mártires.
Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).
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