Em meio ao nosso crônico sonambulismo político, continuamos a falar do astronômico Fundo Eleitoral. Mas nunca se vai ao cerne da questão para contestar essa infame expropriação dos recursos públicos, que afronta todas as regras do Estado Democrático de Direito. Apenas discutimos o seu pantagruélico montante — como a dizer que, se o assalto continuasse a ser de R$ 2 bilhões, como em 2018 e 2019, e não de R$ 4,9 bilhões, como agora, nós o aceitaríamos de bom grado.
Ficamos sempre na indignação inconsequente e frustrante, alimentada pela rotina dos escândalos diários patrocinados pelas lamentáveis autoridades que comandam o País. Mas esses protestos se liquefazem nas conversas, na mídia e nas mensagens nas redes sociais, para tudo continuar como está, apesar da repulsa de 90,7% do povo brasileiro a esse monstruoso “auxílio-reeleição”.
Nesse clima de meras lamentações e resignações, mesmo os poucos deputados e senadores decentes que votaram contra o saque eleitoral jamais entraram com a arguição de inconstitucionalidade da Lei n.° 13.487/2017, que criou esse “Fundo Especial de Financiamento de Campanha” (FEFC).
Os fundamentos para a declaração de inconstitucionalidade são claros. De acordo com o artigo 17, § 3.º, da Carta Magna, as únicas fontes de recursos públicos atribuídos aos partidos políticos são o Fundo Partidário e o acesso gratuito ao rádio e à televisão. Não se pode admitir que, sendo os partidos pessoas jurídicas de direito privado — agremiações particulares, portanto, fora do organograma do Estado —, possam receber, ainda, outros recursos orçamentários. As benesses constitucionais que os constituintes de 1988 concederam aos partidos são numerus clausus, ou seja, não podem ser ampliadas por mera autorização legislativa votada pelos próprios interessados. Do contrário, teríamos — como agora temos com o Fundo Eleitoral — uma porta escancarada de apropriação de verbas orçamentárias para atender permanentemente aos interesses da casta política que domina e afunda cada vez mais este País.
Os donos dos partidos e seus apaniguados vão se apropriar, neste ano, de R$ 4,9 bilhões para cooptarem os votos dos eleitores. Em vez de compromissos com políticas públicas, os partidos hegemônicos vão entupir de dinheiro os marqueteiros, os cabos eleitorais, os diretores de associações de bairro, os megablogueiros, os influencers, os reis da música sertaneja e do funk, os rappers e os repentistas de aluguel e ainda a imprensa marrom na conquista de votos, na base da mais vulgar ilusão e do mais baixo clientelismo. Alegam os nossos parlamentares que o FEFC substitui as contribuições eleitorais dos empreiteiros e fornecedores do Estado, agora proibidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ocorre que, somados os caixas 1, 2 e 3 das eleições anteriores a 2018, essas doações empresariais não chegavam nem a 5% do Fundo Eleitoral aprovado por 80% dos representantes do povo no Congresso Nacional.
Além do vicio formal, há uma insanável inconstitucionalidade material nesse sumidouro dos recursos públicos. Isso porque ele está sendo abastecido por 30% das verbas orçamentárias que devem obrigatoriamente ser aplicadas nas áreas da saúde e da educação, a cargo da União, dos Estados e dos Municípios – artigos 23 e 24 da Constituição Federal (CF).
E o FEFC é também absolutamente inconstitucional por ferir frontalmente todos os princípios que regem o exercício do poder público, que defluem do artigo 37 da CF.
O primeiro é o do interesse coletivo, na medida em que a atual derrama de quase R$ 5 bilhões nas mãos dos políticos profissionais vai deturpar inteiramente a livre escolha dos eleitores, que serão cooptados pelo poder econômico, promovido pelo próprio erário. O segundo princípio é o da moralidade no exercício do mandato legislativo, que indeclinavelmente deve visar ao bem comum, e nunca ao interesse dos próprios deputados e senadores e de seus esclerosados partidos. O terceiro é o da impessoalidade, não podendo a lei favorecer os grandes partidos, que receberão muito mais desse megafundo eleitoral do que os partidos fisiológicos menores. O PT, a quem coube, em 2017, a iniciativa e a relatoria dessa infame lei, receberá, neste ano, meio bilhão de reais, e os partidos do Centrão outros tantos.
E a FEFC infringe, por isso mesmo, os princípios da finalidade e da motivação, sendo óbvio que os políticos profissionais procuram com esses bilhões garantir a sua reeleição, o que contraria a vocação democrática da contínua renovação dos quadros políticos. E, ainda, o FEFC fere os princípios da oportunidade, da razoabilidade e da proporcionalidade, na medida em que é inoportuno, desmesurado e inadmissível diante da miséria e da fome que se expandem e crescem a cada ano em nosso País.
O FEFC é uma afronta ao povo brasileiro. Por tudo isso, é necessário que os poucos parlamentares e partidos que se opuseram a essa sangria se dirijam ao STF para que os seus ministros declarem a inconstitucionalidade formal e material do Fundo Eleitoral.
É ADVOGADO E AUTOR DE “UMA NOVA CONSTITUIÇÃO PARA O BRASIL” (LMV, 2021)
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