Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman
Começou na sexta-feira (18), com uma manchete no impresso do Estado de S. Paulo: "Gabinete paralelo de pastores controla agenda e verba do Ministério da Educação". Gilmar Silva dos Santos e Arilton Moura são identificados pelo jornal como "um gabinete paralelo que facilita o acesso de outras pessoas ao ministro".
Em um vídeo, gravado em Centro Novo do Maranhão (MA), no ano passado, Milton Ribeiro, ladeado pelos lobistas, justifica o esquema: "Nós já fizemos em alguns lugares. Sem política, sem discurso de parlamentar nenhum. Respeito os parlamentares, mas é técnica".
A segunda paulada saiu da Folha, na segunda (21): "Ministro da Educação diz priorizar amigos de pastor a pedido de Bolsonaro; ouça áudio". A fala do ministro é cristalina: "Então o apoio que a gente pede não é segredo... é apoio para construção de igrejas".
A gritaria, no dia seguinte, já era grande em torno da gravação obtida pela Folha, quando o Estadão apareceu com outra, de um prefeito relatando inusitado pedido de propina: "Pastor pediu um 1 kg de ouro para liberar dinheiro no MEC, diz prefeito; ouça áudio".
(Comentário paralelo, expressões como "ouça áudio", "veja vídeo", "entenda" são as muletas do jornalismo atual, condicionado pela busca de audiência, uma chatice; daqui a pouco teremos que dançar no TikTok para contar que a Rússia invadiu a Ucrânia.)
Na quarta (23), foi a vez de O Globo achar outra modalidade de achaque: "Prefeito diz que pastor lobista pediu propina até em bíblias para liberar recursos do MEC". Na quinta (24), o Jornal Nacional identificou uma nova personagem, que se oferecia para intermediar a liberação de verbas.
Há tempos não se via tamanha artilharia contra um político. Um observador bolsonarista poderia até dizer que é uma campanha. Quando a munição é farta, no entanto, o mais provável é que haja muita gente dentro da própria engrenagem querendo ver Ribeiro no cadafalso. Mais de um analista descreveu o MEC como uma espécie de crepúsculo entre o dia da bancada evangélica e a noite do centrão.
Enquanto tudo isso acontecia, Jair Bolsonaro cumpria os itens de seu surrado mas até aqui eficiente manual de crise, que prevê ações progressivas, como ignorar, minimizar, xingar, falar de Deus, desviar a atenção, defender os seus. Ribeiro é um dos seus até segunda ordem. "Coisa rara de eu falar aqui: eu boto minha cara toda no fogo pelo Milton. Estão fazendo uma covardia contra ele", disse o presidente em live.
É uma covardia contra Milton, não contra seu ministro ou seu governo. Bolsonaro usou a mesma tática no caso Wal do Açaí, revelado pela Folha ainda na campanha presidencial. Covardia, sacanagem, o crime dela foi cuidar dos cachorros. Corrupção não existe, o que existe é maldade contra os seus. Soa como detalhe, mas repare que, nos títulos citados, a palavra "Bolsonaro" aparece uma única vez.
Bolsonaro não se queima. A depender do momento, a inflação é culpa de Guedes, a gasolina, do general que comanda a Petrobras, a crise, dos estados. O presidente é crítico do próprio governo, e o registro acrítico de declarações, outra praga do jornalismo atual, contribui ativamente para que isso se torne plausível.
Em entrevista recente, um autor ucraniano diz que o Ocidente não apenas aceita como reproduz a argumentação de que a Rússia se vê ameaçada pela Ucrânia e pela Otan. A verdade, segundo ele, é que a Rússia não se vê ameaçada porque ninguém ameaça uma potência atômica como a Rússia. Putin invadiu porque quis, e esse gesto absurdo é dissolvido em tentativas tolas de explicação.
Bolsonaro se dissolve em explicações até ficar invisível.
PASTORES E PASTORES
Leitor se queixa da palavra "pastor" nos títulos da Folha sobre o escândalo no MEC. Afirma que seu avô, por mais de 40 anos, foi pastor luterano em Joinville e, ao morrer, deixou como patrimônio uma casa antiga e um Fusca 1974. Respondi de chofre que era importante, no contexto da notícia, identificar os intermediários como pastores evangélicos.
Em um segundo pensamento, entendi o óbvio risco de estar cometendo generalizações. A verdade é que o assumimos todos os dias nessa profissão.
POWERPOINT
Leitores reclamam do tratamento dado pela Folha à notícia de que Deltan Dallagnol será obrigado a indenizar Luiz Inácio Lula da Silva pelo vexame do Powerpoint. Lembram que, em 2016, o jornal deu manchete para o agora ex-procurador. Na Primeira Página de quarta (23), o desfecho da novela mereceu uma chamada simples, abaixo da dobra.
Reinaldo Azevedo, em sua última coluna, chegou a sugerir um mea-culpa à imprensa não militante. "Chamava-se 'grande' antigamente", cutucou.
O mea-culpa da imprensa na cobertura da Lava Jato virá junto com o do PT. Nunca.
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