Mais uma comemoração da inauguração de Brasília foi celebrada, e no próximo ano acontecerá o mesmo. O que será dito e rememorado também será igual. Todos os anos estão sendo assim. Não há porque mudar, aparentemente, mas deveria haver. Os que desta forma celebram não herdaram o dinamismo e o poder de iniciativa do construtor da nova capital, o cordial Juscelino.
Ele começou a fazer um novo Brasil com espírito alegre, otimismo e coragem. E aqui continuamos todos nós. Sem ele o Brasil perdeu um pouco de sua alegria e os abusos continuam. As avaliações devem ser aprofundadas e as falhas corrigidas. Feita com dinamismo, a capital não pode ficar estática. A exaltação do correto não pode promover o esquecimento do errado. Mais uma dose de pés no chão e atividades novas e progressistas. Sem descuidar, absolutamente, dos problemas sociais e humanos.
Pois Brasília está longe de ser quase perfeita. Aqui aconteceu, logo no início, um pecado terrível. Os pobres, os trabalhadores, os nordestinos, esses sempre menosprezados, levantaram os prédios, asfaltaram as pistas, plantaram as primeiras faixas de grama e árvores, e ganharam o apelido simpático de candangos.
Não voltaram para suas casas porque não as possuíam. Foram empurrados para fora dos limites urbanos da batizada Novacap e a maioria lá está, sobrevivendo até hoje com grandes dificuldades. O Rio, de sua parte, acordou e de Velhacap passou a Belacap. Recuperou-se, seguiu seu rumo.
Surgiram várias brasilinhas denominadas cidades satélites, que resistem até hoje, além dos limites do Plano Piloto. Existem áreas semi-urbanizadas e com poucas construções, mas algum crescimento. O nível social, econômico e humano dos moradores de algumas dessas áreas é infinitamente inferior ao dos que habitam Brasília pelo lado de dentro – as superquadras. Houve alguma evolução, mas a vida lá é difícil. Existe ainda a região do Lago onde moram as classes de maior poder aquisitivo. Ou compraram suas terras no início de tudo, quando elas pouco valiam.
Uma inovação estimulante. Nas áreas mais ricas de Brasília, no entorno do Lago, os futuros moradores compravam lotes, incluindo uma porção de área verde para plantações de estimulo à preservação da natureza. Nessas áreas, de tamanho variável, nada poderia ser construído: só preservar a natureza.
Para os pobres, nas áreas mais modestas, não existiu essa preocupação de estimular a área verde. Pena. Lá os terrenos são de puro barro ressequido. Não nasce nada, são fábricas de poeira. Os realmente necessitados e na luta para sair da pobreza vivem ainda em boa parte na terra batida. Insistem na luta por uma moradia modesta mas decente, sob sol inclemente ou chuva torrencial: os climas dominantes da capital.
Essa é uma das mais dolorosas discrepâncias de Brasília: a classe média e alta acantonadas no Plano Piloto e Lago, condomínios e em bairros das principais cidades satélites, enquanto a maioria sem recursos sobrevivendo como podem, mesmo sem poderem, fora do Plano Piloto. Sem que o mínimo da qualidade chegue até eles.
A beleza insuperável da cidade e seus monumentos arquitetônicos é fartamente disseminada pelos brasilienses. Como não surgiu uma nova atração fora a arborização e o urbanismo, o panorama da capital é o mesmo de seus primórdios. A rodoviária central, por onde circulam diariamente muitas dezenas de milhares de pessoas, rara semana que não tenha suas escadas rolantes paralisadas por defeito mecânico. Os passageiros sofrem sem a escada rolante, com a caminhada e os ônibus. Um castigo desde a inauguração.
Outra questão séria fustiga os menos favorecidos. Sem recursos para o carro particular, são prejudicados pela limitação do sistema de transporte público, com tráfego de ônibus só nas vias principais. O próprio traçado da cidade não permite o trânsito de ônibus nas vias internas. Caminhar muito não é propriamente um esporte na capital, mas uma necessidade. Transporte público, mesmo, só nas avenidas paralelas – W3, L 2, Eixão e lá vai.
Ainda tem Setor de Mansões, Park Way, bairros para grandes residências e gente graúda nas finanças. Algumas das áreas de baixo poder aquisitivo começam a evoluir. Ainda muito longe do que poderia ser considerado o mínimo necessário para um padrão de vida minimamente aceitável. Em Brasília a visão apaixonada das obras de Niemeyer relega outros aspectos da cidade de grande valor arquitetônico.
A Catedral, simples e bela, pode ser destacada como uma das principais criações de Niemeyer. Acompanha a simplicidade e a humildade de Cristo, da religião, a pureza de sua obra. É dos poucos exemplos de arquitetura despojada, sem o exibicionismo do ouro e das grandes obras de arte das igrejas pelo mundo. A igreja combate a pobreza exibindo a riqueza da arte sacra? Na Catedral de Niemeyer poucos anjos em vôo guarnecem a simplicidade, a humildade, a pobreza de peças artísticas e a mensagem de amor e fraternidade pela qual Jesus morreu.
Enquanto isso persiste a disputa frívola do que é, em todo o mundo, o mais bonito, o melhor e outros superlativos. Em relação a paisagens, por exemplo, quais seriam as mais belas do mundo. Brasília tem sido destacada pelo título que lhes deram muitos de seus habitantes: o de ter o pôr do sol e o céu azul mais bonitos do mundo.
O pôr do sol e o céu azul são absolutamente iguais em todo o mundo. O que muda são o entorno, a paisagem, a base em que a imagem chega à vista dos terráqueos. Pode ser que um não belo dia mostre uma zona de queimada de floresta sob o sol se pondo. Uma visão triste. Ou um céu azul bastante afetado por raios e tempestades que o deixam escurecido. Assim, nenhum deles ganhará o título de mais bonito do mundo.
– José Fonseca Filho é jornalista
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