No processo de enfraquecimento das instituições levado a cabo pelo bolsonarismo, é atribuído às Forças Armadas um papel que não lhes corresponde. Os militares não são guarda pretoriana, tampouco poder moderador. A Constituição de 1988 estabelece que as Forças Armadas se destinam “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Para que possam cumprir suas funções constitucionais, as Forças Armadas têm de estar obrigatoriamente distantes da política. Por consequência, devem estar distantes do bolsonarismo, do lulopetismo ou de qualquer outro grupo político.
É de justiça reconhecer que, desde 1988, as Forças Armadas têm se portado exemplarmente, em plena conformidade com seu estatuto constitucional, sem se envolver em questões políticas. Esse posicionamento institucional foi reforçado e protegido pela criação do Ministério da Defesa em 1999, durante o governo de Fernando Henrique, que reuniu as pastas correspondentes à Marinha, ao Exército e à Aeronáutica. Foi um importante marco, confirmando que, num regime civil, também a condução política dos assuntos militares e da defesa deve estar plenamente integrada à administração geral do Estado. Na construção e manutenção desse cenário institucional próprio de um Estado Democrático de Direito, os militares tiveram papel fundamental, com seu firme compromisso à Constituição de 1988.
É notório, no entanto, que Jair Bolsonaro não nutre afeição por essa configuração institucional. Em seus discursos e ações, vislumbra-se uma pretensão contrária ao que dispõe a Constituição. Bolsonaro quer ter as Forças Armadas ao lado de seu projeto político e, para piorar, deseja lhes atribuir um protagonismo político-institucional nas relações com o Judiciário e o Legislativo. Tudo isso é rigorosamente inconstitucional. “Política não pode estar dentro do quartel. Se entra política pela porta da frente, a disciplina e a hierarquia saem pela dos fundos”, lembrou, em novembro de 2020, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão.
Por tudo isso, é preocupante a nota As Forças Armadas e o Processo Eleitoral, emitida no domingo passado pelo Ministério da Defesa, em reação a uma palestra dada a estudantes pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ao reverberar uma suscetibilidade exagerada, sem se ater sequer ao que foi dito pelo palestrante, a nota suscita a mensagem oposta ao que, em tese, deveria transmitir.
Na palestra, Luís Roberto Barroso reconheceu, em tom de elogio, que “o profissionalismo e o respeito à Constituição têm prevalecido” nas Forças Armadas. Alertou, no entanto, para o risco de “voltar à tradição latino-americana de colocar o Exército envolvido com política”. Segundo o ministro do STF, observa-se a tentativa de usar as Forças Armadas “para atacar o processo (eleitoral) e tentar desacreditá-lo”. Disse ainda ter fé “que as lideranças militares saberão conter esse risco de contaminação indesejável que levou à ruína da Venezuela”.
Assinada pelo ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, a nota, que não cita a Constituição de 1988 nem os deveres constitucionais das Forças Armadas, “repudia qualquer ilação ou insinuação, sem provas, de que elas teriam recebido suposta orientação para efetuar ações contrárias aos princípios da democracia”.
Citando a “ampla confiança da sociedade (nas Forças Armadas), rotineiramente demonstrada em sucessivas pesquisas e no contato direto e regular com a população”, o texto ainda afirma que “as eleições são questão de soberania e segurança nacional, portanto, do interesse de todos”. Não parece destinado a sanar dúvidas, tampouco a mostrar eventual equívoco da fala de Luís Roberto Barroso.
A distância que as Forças Armadas, desde a Constituição de 1988, vêm mantendo das questões políticas precisa ser preservada. Algo importante e valioso foi construído no período. Não se pode deixar que o bolsonarismo, com sua pretensão de autoritarismo, destrua esse legado.
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