O cidadão bolsonarista foi deseducado para fazer o que bem entender em nome da liberdade. Se seu ato ou palavra causam morte e violência, se afeta política pública, se discrimina e oprime, basta tocar o sininho: liberdade! Essa liberdade nada tem a ver com a liberdade política, civil ou constitucional. Ela se cultiva no fígado.
O parlamentar bolsonarista, operador mais engajado na deseducação pelo exemplo, recorre a um sininho mais sonoro e poderoso: imunidade parlamentar. Veja Daniel Silveira. Não toma anabolizantes só no sentido literal. Quer também esse acréscimo artificial de testosterona na sua condição jurídica. Veja Eduardo Bolsonaro, fisicamente menos anabolizado, juridicamente viciado no esteroide.
Deputados não precisam passar por teste antidoping biológico. Mas à democracia deveria preocupar o doping jurídico. Se juízes, promotores, comissões de ética e parlamentos não conseguem ou não desejam controlar o doping jurídico, por recusa ou medo de fazer distinções jurídicas elementares, tornam-se casas de tolerância à delinquência política.
De fato, a imunidade parlamentar parece dar a parlamentares uma liberdade de expressão turbinada. São invioláveis por suas "opiniões, palavras e votos", proferidos na condição de representantes dentro ou fora dos espaços formais da política. Por conveniência, escondem responsabilidades e limites, também turbinados, que acompanham essa prerrogativa.
Essa confusão, deliberada ou não, estratégica ou não, traz grandes perigos para a democracia em tempos de cólera e de peste. Porque a imunidade parlamentar não se confunde com o direito individual de qualquer cidadão.
O direito de um cidadão é fim em si mesmo, fruto de nossa igual dignidade. A imunidade parlamentar, ao contrário, é instrumento para proteger a independência do Parlamento, promover a qualidade da representação política e do debate democrático, e prevenir intimidações a parlamentares. Instrumento para a dignidade do Parlamento, não fim em si mesmo, decorrente da dignidade humana.
Juristas brasileiros escreveram muito a respeito no século 20. Pedro Aleixo explicou que imunidade serve para "garantir a independência do órgão legislativo". Não é "vantagem em relação ao comum dos membros da coletividade". João Barbalho lembrou que, numa República, ninguém exerce função política como "direito próprio", um título nobiliárquico. Ali, não há "invioláveis e irresponsáveis".
Oswaldo Trigueiro alertou que imunidade não pode se converter em "virtual irresponsabilidade". Raul Machado Horta atribui ao Parlamento a "correção dos excessos ou abusos" do parlamentar. Pontes de Miranda aponta que o fundamento dessa prerrogativa é a representação política "fiel, livre e corajosa". Não a abusiva, criminosa e autoritária.
O próprio STF, apesar de prática inconsistente nas decisões sobre o tema, já cansou de repetir que imunidade, em oposição a um privilégio pessoal, está sujeita a limites. É sua teoria jurídica da imunidade. Em casos concretos, uma teoria de onde se tira critérios para traçar as linhas entre o permitido e o não permitido.
Aécio Neves, veja só, quando presidente da Câmara em 2002, justificou o Código de Ética e Decoro da casa como instrumento para incrementar a "qualidade moral das instituições brasileiras" e para que a sociedade "volte a olhar com respeito para o Parlamento". Esse código dispõe que abusos das prerrogativas são "puníveis com perda de mandato".
O projeto de lei das fake news (PL 2.630/2020), que tramita em estágio adiantado na Câmara, apesar de avanços importantes, traz uma aberração jurídica que se aproveita dessa danosa distorção jurídica. Prevê que "imunidade parlamentar material estende-se às plataformas mantidas pelos provedores de aplicações de redes sociais" (art. 22, §8º).
Seus autores argumentam que a regra busca apenas reforçar a imunidade prevista no artigo 53 da Constituição. Uma norma, portanto, redundante. Apenas um "lembrete". Sabem tudo de ilusionismo legislativo, esses inocentes. Análises recentes do InternetLab permitem visão mais abrangente.
Além de corromper as regras de moderação de plataformas, que precisam de transparência e aplicação consistente para todos, o PL busca criar salvo-condutos digitais para a delinquência política. Se você posta fake news, a rede bloqueia. Se deputado posta, vale o cartão da imunidade, versão Daniel Silveira.
A regra não só é discriminatória, não só carece de real justificativa dentro das finalidades da imunidade parlamentar, mas cria vantagem competitiva que desequilibra ainda mais o processo eleitoral de 2022.
Não bastassem as tantas desigualdades que contaminam as eleições e vantagens que parlamentares em exercício possuem para se reeleger, querem que redes injetem na veia de eleitores suas doses controladas de ódio para aquecer emoções primárias. E só os candidatos com mandato. Os sem mandato que lutem.
Imunidade parlamentar deve servir à democracia, não corrompê-la.
Conrado Hübner Mendes
Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC
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