Certas palavras e expressões, mesmo que traduzíveis, funcionam melhor no idioma de origem. "Diving" é uma delas. Não na acepção de mergulho, o significado direto, mas no futebolístico, o ato de se jogar dramaticamente na grama para reivindicar uma falta que não existiu. Brasileiros são tidos como especialistas na modalidade. Neymar é rei.
O idioma português não oferece correspondência exata para o termo. Alguém lembrará de simulação, de caráter técnico, ou cai-cai, este infantil, quase tolerante com a fraude. "Diving" em inglês também significa saltos ornamentais, o esporte onde a estética duela com a gravidade para, por alguns segundos, transformar em arte um corpo em queda. Quem salta da plataforma, no entanto, o faz sozinho, não é empurrado por ninguém. Eis o ferino humor britânico.
Quem se atirou às profundezas do relvado, na quinta-feira (31), foi o então governador de São Paulo, João Doria. No dia em que deveria transferir o cargo ao vice, Rodrigo Garcia, e se lançar de vez à corrida presidencial, Doria amanheceu resoluto de que a sua grande aventura política parava por ali. Como antecipou a Folha, no segundo grande furo do jornal nesta corrida presidencial (o primeiro foi o advento da dobradinha Lula-Alckmin), Doria avisara Garcia ainda na quarta que ficaria no Palácio dos Bandeirantes até o fim do mandato, ou seja, que desistira do Planalto.
(P.S.: Sérgio Ruiz, redator-chefe de Veja, entra em contato com a coluna para lembrar que a ameaça de desistência de Doria foi publicada pelo site da revista, no blog Maquiavel, já na madrugada de quinta-feira. Registro feito, agradeço a ponderação.)
Segundo a reportagem, replicada imediatamente e com créditos à Folha pela concorrência, Doria anunciaria também a desfiliação do PSDB, acusando caciques do partido de o terem traído. Somando tudo, implosão do principal palanque do partido no país, da candidatura Garcia e, muito provavelmente, da própria legenda.
Enquanto o alerta da notícia piscava na tela dos celulares, a versão impressa da Folha virava ficção antes do café da manhã. Na página A3, em Tendências / Debates, o nome de Doria encimava o artigo "Obrigado, São Paulo". "Cumpro o preceito legal, que determina a desincompatibilização do governo de São Paulo, para iniciar nossa caminhada rumo à Presidência da República", escreveu. Em contraste, Bia Doria, em entrevista no site, falava de alívio. "Quero meu marido de volta em casa."
Em manobra que considerei temerária, o jornal atualizou a reportagem que, na página A10 do impresso, apresentava o dia em que o governador viraria candidato, com resumo dos feitos de sua administração e desafios de campanha. Na crítica interna, indaguei se a Redação mudaria o texto mais uma vez se Doria recuasse do recuo. Horas depois, em construção equivalente, a Folha publicou em manchete que ele desistira de desistir.
No primeiro ato como ex-governador, Doria descreveu a turbulenta jornada como estratégia. "Não houve desistência, houve sim planejamento para que pudéssemos ter aquilo que conseguimos, o apoio explícito do PSDB." Quem acompanhou o noticiário percebeu que o resultado logrado durou pouco, como o furo da Folha.
Jornalismo é ingrato. Ao cumprir de forma competente seu papel, o jornal impôs o nome de Doria às manchetes do país durante boa parte de uma quinta-feira de movimentação política intensa, que também teve Sergio Moro abrindo mão de candidatura (nova moda, o ex-juiz desistiu de ter desistido na sexta-feira) e o presidente da República renovando suas ameaças à democracia. Uma vitória de Pirro do ex-governador paulista, traduzida equivocadamente como tropeço pela Primeira Página da Folha do dia seguinte. Tropeça-se sozinho, mas não por querer.
Doria mergulhou feio. Nem Neymar espirra tanta água.
José Henrique Mariante - Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman
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