quinta-feira, 19 de maio de 2022

A IMPRENSA ENCARCERADA

Taís Gasparian e Eugênio Bucci, O Estado de S.Paulo

É razoável que um jornalista vá parar na cadeia por algo que escreveu? Uma palavra, ainda que dura ou imprópria, deve mesmo ser punida com prisão? É isso que chamamos de justiça?

No Brasil, a resposta a essas perguntas tem sido “sim”. Não é todo dia que vemos jornalistas sendo presos por ser jornalistas, mas a hipótese é sempre iminente, feito uma espada de Dâmocles: se o texto que assinou for julgado como calúnia, injúria ou difamação, um profissional de imprensa pode se ver obrigado a fixar residência atrás das grades.

Está mais do que na hora de refletirmos a respeito. Será que o presídio é o melhor caminho? Agora mesmo, em março, o jornalista Paulo Cezar Prado, editor do Blog do Paulinho (blogdopaulinho.com.br), de São Paulo, foi condenado a um ano e meio de encarceramento por ter publicado uma matéria com um erro factual. Um ex-juiz, hoje advogado, se sentiu ofendido e apresentou queixa. O jornalista se retratou – por duas vezes – e corrigiu o erro, mas de nada adiantou. Terá de ir para uma cela.

Nos Estados Unidos e na Inglaterra não há previsão de pena restritiva de liberdade para esses delitos. Na Argentina, esses ilícitos deixaram de ser punidos com prisão. Em episódios recentes, a Corte Interamericana de Direitos Humanos manifestou o entendimento e a recomendação de que os países signatários deixem de criminalizar as condutas contra a honra quando a acusação recai sobre comunicadores, como os jornalistas.

No Brasil, insistimos na contramão. O regime atual só serve para espalhar medo, não para fazer justiça. Fica evidente que quem quer impor ao ofensor uma pena tão grave como o confinamento não quer reparar o dano sofrido, quer apenas se vingar com crueldade e intimidar todo mundo que trabalha na imprensa. De resto, quer sinalizar que, dentro do sistema judiciário, possui uma rede de proteção privilegiada.

Não podemos seguir assim. A agressão à honra, por definição, resulta de um conflito que se dá entre particulares, tanto que já houve época em que as pessoas resolviam esses assuntos na base do duelo – uma disputa de morte entre particulares. Por certo, a lei é sempre melhor que um duelo, mas não é necessário que o tratamento da lei a essa matéria se dê na esfera criminal. Diversos estudiosos do Direito questionam a manutenção dos tipos penais de calúnia, difamação e injúria, e sugerem transferi-los para a esfera cível. Em bom português, eles propõem que esses crimes deixem de ser crimes e passem a ser tratados como matéria de Direito Civil, em que cabe a indenização, mas não a cadeia (é bem verdade que a indenização, no Brasil, tem alcançado cifras exorbitantes e servido de ameaça a jornalistas e comunicadores, mas isso é tópico para outro artigo).

O Direito Penal é a última instância do poder punitivo do Estado; sua aplicação tem caráter subsidiário, isto é, a ele se recorre quando as outras áreas do Direito não são suficientes para solucionar o conflito. A pena restritiva de liberdade deveria ser reservada àqueles que trazem real ameaça à sociedade, o que, por evidente, não é o caso do autor de um artigo ou de uma reportagem.

Ademais, precisamos lembrar que as prisões, neste país, são masmorras que não cumprem o papel de ressocializar e reabilitar ninguém. Ao contrário, só proporcionam aos internos a estigmatização, a degradação e o “contágio” com o mundo do crime. Qual o sentido de o autor de um ilícito menor e particular, que não traz prejuízo à coletividade, ser levado a cumprir pena num lugar desses? O que a sociedade ganha com isso?

A honra tem proteção no capítulo da Constituição federal que trata dos Direitos Fundamentais, e é considerada um bem de grande valor. Trata-se de um direito personalíssimo, que diz respeito à condição social e à autoestima da pessoa. O dispositivo constitucional que trata da honra (artigo 5.º, X) prevê tão somente reparação ao dano, em palavras que não poderiam ser mais claras: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. A Constituição fala em “direito à indenização” e nada mais; não há lugar para vingança pessoal.

Não obstante, é com a cadeia que as autoridades enfrentam o tema. Para piorar o quadro, a pena privativa de liberdade, no Código Penal, é majorada se o crime for cometido contra funcionário público. Ora, os funcionários públicos estão sujeitos a uma esfera de proteção menor – e não maior – quando o que está em pauta são as críticas e o controle popular. Ao abraçarem funções públicas, as pessoas sabem que, na democracia, serão expostas ao escrutínio público. É constrangedor quando notamos que alguns dos que mais deveriam zelar pela liberdade são os maiores usuários deste recurso extremo que é enjaular jornalistas. Está mais do que na hora de interrompermos essa prática odiosa.

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ADVOGADA E JORNALISTA E PROFESSOR DA ECA-USP, SÃO, RESPECTIVAMENTE, DIRETORA E CONSELHEIRO DO INSTITUTO TORNAVOZ, DEDICADO À DEFESA JUDICIAL DE COMUNICADORES

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