Saiba como os generais estão sendo orquestrados por Bolsonaro para dar um golpe contra as eleições
Bolsonaro tenta capturar o Exército para suas ações golpistas desde o início, mas até hoje as Forças Armadas tinham mantido uma distância protocolar de suas tentativas de subverter a ordem constitucional. Isso pode estar mudando. Ele tem avançado decisivamente para colocar a cúpula das Forças Armadas a serviço de seu projeto de perpetuação no poder, reunindo no seu entorno um número crescente de oficiais prontos a segui-lo. A tática é questionar o pleito de outubro. Ele já tinha em seu time Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Hamilton Mourão, todos com quatro estrelas e egressos do Alto Comando.
Agora, o novo ministro da Defesa também resolveu mudar as prioridades da pasta. Bastou um mês à frente do cargo para Paulo Sérgio Nogueira abandonar o perfil estritamente técnico que lhe era característico para se alinhar por completo ao bolsonarismo. No final da tarde do dia 3, após chegar de terno e gravata ao Supremo Tribunal Federal para uma reunião privada pedida na véspera por ele próprio, o general abandonou sua atitude conciliatória ao pressionar a Corte para que as demandas do Exército sobre o processo eleitoral sejam ouvidas.
Marcada dias após a condenação do bolsonarista Daniel Silveira, a reunião entre Paulo Sérgio e Luiz Fux foi a primeira do general desde a posse como ministro. Aconteceu horas depois de Bolsonaro participar de outro encontro, devidamente registrado nas redes sociais, com o titular da Defesa e os comandantes da Aeronáutica, do Exército e da Marinha. O tema tratado pelo presidente e os fardados não foi divulgado — o ministério limitou-se a informar que houve uma discussão sobre “assuntos de interesse da Defesa nacional”. Foi um jogo de cena para colocar pressão sobre o tête-à-tête que ocorreria, na sequência, entre Paulo Sérgio e o presidente do STF. A ação de Paulo Sérgio foi orquestrada por Bolsonaro, que usa os militares para intimidar o Judiciário. Não foi um movimento isolado. Em 28 de abril, ele pediu em carta a Edson Fachin, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, a retirada da Comissão de Transparência das Eleições de Heber Portella, general de Divisão indicado ao posto pela Defesa à época da gestão Braga Netto. Na Corte, avalia-se que Portella havia recebido de Braga Netto a missão de instilar dúvidas para justificar o caos eleitoral. No ofício, o titular da Defesa explicou que centralizaria em si a interlocução com o colegiado. O movimento causou estranheza, sobretudo porque os integrantes da comissão foram elencados em uma portaria. Paulo Sérgio, portanto, não poderia se autonomear.
A reação coube a Fachin. O presidente do TSE irritou-se com o trecho do documento em que Paulo Sérgio critica o fato de não ter sido recebido pessoalmente por ele. Nos bastidores, o ministro sublinhou que atende a todos e só não teve um tête-à-tête com o general porque o pedido ocorreu de véspera e ele não tinha espaço na agenda. Interlocutores de Fachin ressaltam que, depois disso, ele não voltou a ser procurado e, por isso, veem o documento como um pretexto para dizer que o tribunal estaria dificultando a participação das Forças Armadas no processo. Ou seja, era apenas mais munição para Bolsonaro desastibilizar as eleições. Na última quinta-feira, Fachin insistiu que “a Justiça Eleitoral está aberta a ouvir, mas jamais a se dobrar a quem quer que seja. O processo eleitoral é um tema civil”. E emendou: eleição é assunto de “forças desarmadas”.
Bolsonaro encurrala o Judiciário com um jogo de ameaças. Quanto mais as cortes cedem em nome da pacificação, mais espaço ele tem para avançar
Ofensiva contra TSE
Paulo Sérgio escreveu o ofício pouco mais de um mês depois de Heber Portella propor sete alterações no processo eleitoral, como a inclusão nos testes públicos de segurança das urnas eletrônicas do modelo de 2020, as quais serão utilizadas pela primeira vez. No início deste mês, a Defesa pediu, publicamente, que as sugestões fossem publicizadas. Antes de respondê-las, Fachin frisou que o TSE jamais se opôs à divulgação dos documentos e, de forma dura e certeira, ressaltou que, embora a corte respeite as ponderações e as leve em consideração para futuras eleições, acabou em 5 de março o prazo para quaisquer alterações no pleito deste ano. O TSE negou assertivamente três das sete proposições e esclareceu que o restante já está em prática.
Foi uma forma de o tribunal neutralizar as investidas de Bolsonaro, que sobem de tom. Ministros das cortes superiores passaram a considerar equivocada a decisão do TSE de chamar as Forças Armadas para o processo, tomada por Luís Roberto Barroso à época em que presidia o Tribunal, na tentativa de frear os ataques de Bolsonaro. Parte dos magistrados, agora, prega um endurecimento e o fim dos trabalhos da Comissão de Transparência. “Da semana passada para cá, houve uma virada na chave. Percebeu-se que esse assento não está sendo usado para ajudar, mas para tumultuar”, pontua um ministro do TSE. Fachin resiste à dissolução. Para o presidente do tribunal, o tiro poderia sair pela culatra. Bolsonaro, analisa ele, poderia dizer que a corte se intimidou diante de uma possível totalização de votos feita sob a lupa dos fardados. A próxima reunião da comissão está prevista para junho.
Bolsonaro encurrala o Judiciário com esse jogo de ameaças. Quanto mais as cortes se tornam transparentes e cedem em nome da pacificação, mais espaço ele tem para avançar em sua tática de tumultuar o pleito. A crise, que chegou ao ápice nos últimos dias, é planejada há muito tempo e teve a participação de outros dois generais-políticos: Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno. Informações colhidas pela Polícia Federal na investigação que apura os ataques infundados do presidente ao sistema eleitoral —processo recém-incorporado ao inquérito das milícias digitais — mostra que os militares já buscavam em 2019 pólvora para abater as urnas eletrônicas.
Em depoimento à PF, o técnico de informática Marcelo Abrieli contou que foi convidado por Luiz Eduardo Ramos, próximo de Bolsonaro desde os tempos da Academia Militar e então ministro da Secretaria de Governo, para uma reunião no Planalto que buscava “indícios de fraudes”. Antes de Bolsonaro ascender ao Planalto, o técnico já havia procurado o militar, nas eleições de 2018, para lhe relatar suspeitas de irregularidades no pleito de 2014, quando Dilma Rousseff venceu Aécio Neves. Em 2021, os dois se encontraram novamente. Abrieli foi chamado a contribuir para a live em que Bolsonaro fez seu mais duro ataque às urnas. E assim o fez.
Heleno, indiretamente, também escalou um ajudante para a missão. O perito criminal da PF Ivo Peixinho, com experiência em testes nas urnas eletrônicas, contou, em depoimento, que, “em 2019 ou 2020”, Alexandre Ramagem, então diretor-geral da Abin (subordinada ao GSI de Heleno), lhe enviou uma consulta “sobre ocorrências ou atividades envolvendo urnas eletrônicas nas eleições”. O perito respondeu com um informe com todas as atividades da PF sobre o tema — o material, claro, acabou usado na live. A transmissão foi uma farsa para Bolsonaro apontar fraudes nas urnas eletrônicas, mesmo sem ter nenhuma prova. Ele chegou a divulgar ilegalmente um inquérito sigiloso da PF.
Intimidação aos poderes
Os depoimentos, constantes da investigação em trâmite no STF, integram, ainda, o inquérito administrativo aberto pelo TSE em agosto passado para investigar ataques contra o sistema de votação e a legitimidade das eleições de 2022. É uma apuração que assusta Bolsonaro, pois pode no limite torná-lo inelegível no pleito. Com a instauração dos processos, o clima entre o presidente e o Judiciário azedou de vez. E ele recorreu de novo aos fardados. Na tentativa de demonstrar força, promoveu um desfile de blindados na Esplanada em 10 de agosto, mesmo dia em que a Câmara votou – e rejeitou –o voto impresso. Menos de um mês depois, insuflou os atos do Sete de Setembro pela intervenção militar e prometeu não mais cumprir decisões judiciais. Para ministros do TSE, o clima de hoje é comparável ao que precedeu os atos golpistas de Setembro.
No tribunal, o receio é que o caminho para uma ação antidemocrática esteja sendo pavimentado. No Exército, há incômodo com o uso político da instituição. ISTOÉ apurou que o Alto-Comando, formado por 15 generais da mais alta hierarquia e o comandante, está insatisfeito com os movimentos de Bolsonaro, de Paulo Sérgio e dos outros generais palacianos. Eles dizem que o presidente não encontrará guarida para um golpe na nata da Força. Destacam que a narrativa de ruptura é patrocinada pelos generais da reserva que integram o governo, mas não pelos da ativa. “No topo da cadeia decisória há um colegiado. Não existe a possibilidade de uma decisão tresloucada. A chance é zero”, afirma um coronel com trânsito no comando.
Mas Bolsonaro tem conseguido ampliar seu Exército de generais e já capturou as Forças Armadas para sua narrativa contra o processo eleitoral. Comenta-se entre oficiais que há insatisfação com parte dos ministros do STF. Um dos nomes citados é o de Luís Roberto Barroso, que, recentemente, declarou que os militares “estão sendo orientados a atacar o processo eleitoral e tentar desacreditá-lo”. Isso gerou uma reação desproporcional: uma nota em que o general Paulo Sérgio acusou o magistrado de “ofensa grave” e “irresponsabilidade”. Coronéis dizem que faltou trato para distinguir o Ministério da Defesa, um órgão governamental, e as Forças Armadas, instituição de Estado. Trata-se de uma falácia. Quando o ministro da Defesa acua o Judiciário em nome do presidente, evidentemente é a ameaça militar que paira no ar. Bastaria que os fardados não se imiscuíssem na política para preservar sua isenção.
Mas essa fronteira é cruzada com frequência cada vez maior. Na reta final das eleições de 2018, o general Eduardo Villas-Bôas, então comandante do Exército, divulgou no Twitter uma mensagem para intimidar o STF, que julgava um habeas corpus a Lula na Lava Jato. A mensagem foi analisada por três generais que viraram ministros de Bolsonaro. O próprio Villas-Bôas se mostrou depois um grande aliado do mandatário. No ano passado, o Alto-Comando do Exército, com a anuência de Paulo Sérgio, isentou o general Eduardo Pazuello de ter participado de um ato político ao lado de Bolsonaro quando estava na ativa, infringindo o regulamento militar. O presidente havia demitido em março a própria cúpula das Forças Armadas porque exigia maior alinhamento. Foi nessa ocasião que o general Paulo Sérgio foi levado ao posto de comandante do Exército, para depois ser alçado à pasta da Defesa no lugar do general Braga Netto, hoje filiado ao PL e provável vice de Bolsonaro em outubro.
Foi de Walter Braga Netto que partiu a principal ameaça de um militar ao sistema eleitoral. Em julho passado, o presidente da Câmara, Arthur Lira, recebeu o alerta: o general havia avisado que não haveria eleições caso o Congresso não aprovasse o voto impresso e auditável. Quando Braga Netto deixou o comando do ministério em março para disputar as eleições, a escolha provocou apreensão no STF, que não sabe ao certo o nível de ascendência dele sobre militares da ativa. Já Augusto Heleno é visto no Supremo como um dos mais radicais generais palacianos. Em maio de 2020, ele usou as redes sociais para declarar que uma eventual apreensão do celular de Bolsonaro resultaria em “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Foi uma das ameaças mais explícitas à ordem constitucional desde o fim do regime militar. Em dezembro passado, a PF o ouviu na investigação sobre as milícias digitais. O ministro negou a revelação feita pela ativista Sara Winter à ISTOÉ de que o general orientou o grupo “300 do Brasil” a deixar de bater na imprensa e no presidente da Câmara e “redirecionar todos os esforços contra o STF”.
Cooptação de militares
Ao invés de isenção, fica cada vez mais explícita a cooptação dos militares por benefícios concedidos pelo mandatário. É o caso de uma portaria que permitiu aos oficiais reformados driblarem o teto constitucional dos salários. Com isso, vários auxiliares engordaram seu contracheque. O maior aumento foi justamente de Luiz Eduardo Ramos, que conseguiu R$ 350 mil a mais em 12 meses. O segundo maior beneficiado foi Heleno (R$ 342 mil acima do teto). O vice-presidente, general Hamilton Mourão (R$ 318 mil), e Braga Netto (R$ 306 mil a mais) também se beneficiaram.
Os militares ainda são a principal aposta de Bolsonaro para melar as eleições. Ele tentou anunciar um acompanhamento paralelo dos votos pelo seu atual partido, o PL do notório Valdemar da Costa Neto. Mas a própria legenda, assim como o resto do Centrão, faz um jogo dúbio e evita embarcar na ameaça golpista, pois sabe que poderá ser tragada numa ruptura institucional. Na última semana, Lula, que lidera as pesquisas eleitorais, subiu o tom contra a ameaça. “Não adianta desconfiar de urna eletrônica. O que ele tem na verdade é medo de perder a eleição e ser preso depois”, disse. Ciro Gomes lançou o alerta: “Há indícios claros de que está em curso um golpe contra a democracia, cujo alvo são as próximas eleições. Ou a sociedade e as lideranças políticas tomam providências já, ou chegaremos a um ponto sem retorno”. No Judiciário, ainda há vozes que minimizam o risco. Mas, a despeito das leituras otimistas, cresce a preocupação com um cenário semelhante à invasão do Capitólio nos EUA por manifestantes trumpistas. Com a ajuda de seus generais, Bolsonaro prepara as bases para um levante semelhante. Nas cortes superiores, o alerta amarelo foi ligado.
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