terça-feira, 31 de outubro de 2023

MUDAR LEGISLAÇÃO PENAL NÃO BASTA PARA COMBATER TRÁFICO E MILÍCIA

Editorial O Globo

Medida é necessária, mas problema na luta contra organizações criminosas começa antes da cadeia

O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, afirmou em entrevista ao GLOBO que a legislação brasileira é leniente demais com traficantes e milicianos. Citou o exemplo de líderes criminosos presos e condenados que, dois ou três anos depois, são soltos em razão do regime de progressão penal. “Queremos que esse criminoso de tráfico e de milícia, que pega em arma, lava dinheiro e usurpa serviços concessionários públicos em prol da milícia e do tráfico, não tenha a progressão”, afirmou Castro. “E que ele vá direto para presídio federal.” Da forma como hoje são combatidas as organizações criminosas, disse ele, “o crime compensa”. Castro sugere que o Congresso mude a lei, ou até a Constituição se necessário, para equiparar os crimes de tráfico e milícia ao terrorismo.

A ideia merece atenção dos parlamentares. É preciso, porém, entender que uma simples mudança na lei — por mais necessária — não terá o condão de resolver uma questão tão complexa. A infiltração das organizações criminosas no Estado acaba por dificultar o cumprimento de qualquer lei.

Reportagem do GLOBO mostrou como o principal líder miliciano em atividade hoje no Rio foi preso duas vezes — e duas vezes solto por decisão judicial. Na primeira, mesmo preso em flagrante com dinheiro, armas e registros de contabilidade, ele contou com a boa vontade de um juiz. Na segunda, quando já acumulava 16 anos em condenações, subornou a polícia e saiu da cadeia sem dificuldade, revelou investigação posterior. Os policiais até apagaram os registros da prisão do sistema da Polícia Civil. Mais recentemente, ele foi absolvido num processo em que era acusado de constituir milícia privada. A Justiça ainda desbloqueou recursos de uma empresa suspeita de lavagem de dinheiro. Seu irmão também foi absolvido de várias acusações.

Em 2019, ano mais recente para o qual estão disponíveis dados, apenas 16% das investigações de assassinatos no Rio resultaram em denúncia no período de um ano, revelou o estudo “Onde mora a impunidade”, do Instituto Sou da Paz. No caso específico do crime de constituição de milícia, um levantamento do GLOBO com 82 processos judiciais mostrou que foram absolvidos 38% dos acusados no Rio entre 2013 e 2022. Apenas os condenados e presos é que contam com os regimes generosos de progressão penal, apontados por Castro.

Os problemas no combate às organizações criminosas começam, portanto, bem antes da cadeia. Primeiro, na promiscuidade que mantêm com corporações policiais e outros agentes do Estado, impedindo que as investigações prossigam. Segundo, na ação leniente de juízes, que acaba por transformar mesmo condenações em vitórias dos criminosos. Castro tem razão em apontar a legislação penal permissiva como fator que favorece os bandidos — isso vale para tráfico, milícia e também para todo tipo de crime, de feminicídios a corrupção. Mas de nada adiantará uma lei mais dura se persistir a infiltração do crime na polícia, na Justiça, nas prisões e até na política.

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