Manfred Back e Luiz
Gonzaga Belluzzo,
CartaCapital
A autonomia operacional deve ser contida nos limites do
sacramento das metas de Inflação
“A liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos
manipulam.”
Baruch Espinosa
Na última reunião do Comitê de Política Monetária
do Banco Central do Brasil (Copom), por unanimidade, foi ratificada a
manutenção da Taxa Selic em 10,5% ao ano e a suspensão temporária de corte na
taxa básica. No Templo dos Milagres do Financismo, localizado na Avenida Faria
Lima, o pastor J.P. Morgan, no final do culto, bradou em êxtase: “Amém,
irmãos! A credibilidade voltou! Nossas preces foram ouvidas, somos o povo
escolhido para ganhar dinheiro, nossa verdade é a nossa fé!” Os fiéis gestores
do dinheiro alheio fizeram o coro: “Oh a credibilidade voltou, oh oh…”
O Deus Mercado sempre está certo, amém irmãos! Quem melhor
entende do vil metal? Nós ou o Banco Central? Nossa autoridade monetária voltou
ao caminho da fé financista, viu a luz no caminho de Damasco… Faria Lima! Amém…
O dilúvio da desancoragem das expectativas inflacionárias
foi salvo pelas mãos divinas do mercado. Contra a fé e o dogma metamorfoseados
em Ciência, ninguém pode! Nem o Bacen! Amém duas vezes, irmãos!
No livro Poder e Progresso, Daron Acemoglu
e Simon Johnson relembram Edmund Burke, contemporâneo de Bentham e Adam Smith.
Burke referia-se às leis do comércio como “as leis da natureza e,
consequentemente, as leis de Deus. Como alguém poderia se opor às leis
divinas?”
Para apaziguar o espírito dos crentes, a autoridade
monetária não deve fazer política monetária
Assim, vamos excomungar os infiéis do Federal Reserve,
sempre dispostos a renegar nossas crenças. Eles dizem:
“Desde o fim de 2008 até outubro de 2014, a Reserva Federal
expandiu grandemente a sua detenção de títulos de longo prazo através de
compras no mercado aberto, com o objetivo de exercer pressão descendente sobre
as taxas de juro de longo prazo e, assim, apoiar a atividade econômica e a
criação de emprego, tornando as condições financeiras mais acomodativas” (site
do Fed).
“O dinheiro que utilizamos para comprar obrigações quando
estávamos a realizar a flexibilização quantitativa não provinha de impostos nem
de empréstimos governamentais. Em vez disso, tal como outros bancos centrais,
podemos criar dinheiro digitalmente sob a forma de ‘reservas do Banco Central’.
“Usamos essas reservas para comprar títulos. Os títulos são
essencialmente notas promissórias emitidas pelo governo e pelas empresas como
forma de pedir dinheiro emprestado.
“Agora que estamos a reverter a flexibilização quantitativa,
alguns desses títulos vencerão e estaremos vendendo outros aos investidores.
Quando isso acontecer, o dinheiro que criamos para comprar os títulos
desaparecerá e a quantidade total de dinheiro na economia diminuirá (site do
Banco da Inglaterra)”.
Felizmente, dizem os sacerdotes da Seita Faria Lima, o Banco
Central do Brasil está impedido de fazer esse tipo de operação amaldiçoada,
praticada sem pejo por nossos irmãos anglo-saxões, tão admirados por aqui. No
Brasil, a autoridade máxima monetária não pode determinar, intervir ou ancorar
a estrutura a termo da taxa de juros. Nossa crença exige que a autonomia
operacional seja contida nos limites da fé imposta pelo sacramento das Metas de
Inflação.
Segundo os mandamentos da Seita Faria Lima, o Banco Central
só pode definir a taxa Selic a cada 45 dias, em conformidade com o Boletim
Focus, o Santo Graal das expectativas. Só eles falam com o Deus Dinheiro!
Os mortais das fábricas de parafusos não entendem de âncoras, só de parafusos!
Amém duas vezes, irmãos!
Reza a legislação dos crentes brazucas:
“O objetivo fundamental do BC é assegurar a estabilidade de
preços, além de, acessoriamente, zelar pela estabilidade e pela eficiência do
sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e
fomentar o pleno emprego (site do Bacen)”.
Para apaziguar o espírito dos crentes, graças às prescrições
do Velho Testamento do Senhor Dinheiro, a autoridade monetária não deve fazer
política monetária e escapar do objetivo enganoso de suavizar as flutuações do
nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego. Por quê? Porque negar
os mandamentos do Deus Mercado é pecado sem remissão!
Nos cultos aos domingos, os mais concorridos, o cântico
final é o mais esperado, quando o pastor J.P. Morgan puxa a reza final: fiscal,
fiscal, fiscal! A oração mais esperada: Oh dinheiro nosso que estás no céu.
Contra satã: a dívida pública explosiva e o Estado esbanjador!
O dilúvio da desancoragem das expectativas
inflacionárias foi salvo pelas mãos divinas do mercado
As ditas operações compromissadas são um instrumento comum
dos Bancos Centrais para controlar a taxa básica fixada no mercado
interbancário. No nosso caso, diferentemente de nossos irmãos do Norte, a
autoridade monetária usa título público federal com cláusula de recompra, para
manter a taxa básica. Muito lucrativa aos bancos, e risco zero. Cabe uma
observação importante, instituições financeiras existem para ganhar dinheiro. O
que podem ou não fazer cabe à autoridade monetária definir. Aqui podem quase
tudo, afinal, são elas que garantem a credibilidade do Banco Central.
As operações compromissadas são registradas como dívida
pública federal. Estimam-se entre 20% e 30% do total, seria na ordem de quase 2
trilhões de reais. São operações de política monetária, nada a ver com o
financiamento do déficit público. Mas serve ao mantra da Congregação da Faria
Lima: fiscal, fiscal…
Para barrar as incursões de Galileu Galilei, o Cardeal
Belarmino escreveu para outro clérigo: “… querer afirmar que realmente o Sol
está no centro do mundo e gira apenas sobre si mesmo sem correr do Oriente ao
Ocidente e que a Terra está no terceiro céu e gira com suma velocidade em volta
do Sol, é coisa muito perigosa, não só de irritar todos os filósofos e teólogos
escolásticos, mas também de prejudicar a Santa Fé ao tornar falsas as Sagradas
Escrituras”.
Voltamos aos heréticos do Federal Reserve:
“Durante o processo de normalização da política que começou
em dezembro de 2015, a Reserva Federal utilizou pela primeira vez acordos de
recompra reversa overnight (ON RRPs) – um tipo de OMO – como uma ferramenta de
política suplementar, conforme necessário, para ajudar a controlar a taxa de
fundos federais e manter dentro da faixa-alvo definida pelo FOMC.
Em setembro de 2019, a Reserva Federal utilizou acordos de
recompra (repo) a prazo e overnight para garantir que a oferta de reservas
permanecesse ampla, mesmo durante períodos de aumentos acentuados nos passivos
não relacionados com reservas, e para mitigar o risco de pressões do mercado
monetário que poderiam afetar negativamente políticas de implementação. A
Reserva Federal continuou a oferecer acordos de recompra overnight e, no
contexto do estresse relacionado com a Covid, por volta de março de 2020, os
acordos de recompra a prazo e overnight desempenharam papel importante para
garantir que a oferta de reservas permanecesse ampla e apoiar o bom
funcionamento dos mercados de financiamento de curto prazo em dólares dos EUA.
Na Declaração sobre acordos de recompra divulgada em 28 de
julho de 2021, o Federal Reserve anunciou o estabelecimento de um mecanismo de
recompra permanente (SRF) nacional. Ao abrigo do SRF, a Reserva Federal realiza
diariamente operações de recompra overnight contra títulos elegíveis. “O FUR
serve de apoio nos mercados monetários para apoiar a implementação eficaz da
política monetária e o bom funcionamento do mercado (site do Fed)”.
Nosso irmão do Norte faz o mesmo tipo de operação, e não é
contabilizado como dívida pública! Indagam os hereges: “Cadê a nossa autonomia
operacional? Por que não implementar os depósitos voluntários e acabar de vez
com as compromissadas, como a grande maioria dos Bancos Centrais no mundo?”
A Seita Faria Lima não deixa. Amém irmãos!
Prosseguem os malditos hereges:
“A taxa de juros sobre os saldos de reservas (taxa IORB) é
determinada pelo Conselho e é uma ferramenta importante para a condução da
política monetária do Federal Reserve. Para a configuração atual da taxa
IORB, consulte a nota de implementação mais recente emitida pelo FOMC. Essa
nota fornece as configurações operacionais para as ferramentas de política que
apoiam a meta do FOMC para a taxa de fundos federais.
“Os depósitos a prazo facilitam a implementação da política
monetária, proporcionando uma ferramenta adicional através da qual a Reserva
Federal pode gerir a quantidade agregada de saldos de reservas detidos pelas
instituições depositárias. Os fundos colocados em depósitos a prazo são
retirados das contas de reserva das instituições participantes durante a
vigência do depósito a prazo e, assim, drenam os saldos de reserva do sistema
(site do Fed).”
Alô, Cardeal Belarmino, é hora de convocar a
Inquisição!
Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03
de julho de 2024.