domingo, 30 de junho de 2024

SUPREMOCRACIA DESAFIADA

Oscar Vilhena Vieira, Folha de S. Paulo

Tensão entre Legislativo e STF não parte só de ressentidos com golpe frustrado contra a democracia

Temos testemunhado uma crescente tensão entre o Poder Legislativo e o Supremo Tribunal Federal. Essa tensão não decorre, no entanto, apenas do ressentimento de alguns inimigos da democracia, contra um tribunal que frustrou suas expectativas de rasgar o pacto constitucional de 1988, em 8 de janeiro de 2023.

Há também um movimento bastante intenso por parte de um grupo mais amplo de parlamentares desconfortáveis com o controle exercido pelo Supremo sobre a conduta da classe política, assim como em decorrência do que reputam ser avanços indevidos do tribunal sobre as esferas de competência reservadas ao legislador.

Até o presidente Lula, aliado da hora do Supremo, resolveu dar conselhos ao Supremo, afirmando que o tribunal não deveria se meter em tudo, em reação à decisão do STF de despenalizar o porte de maconha para consumo próprio.

A reação do Legislativo ao modelo supremocrático que foi paulatinamente se consolidando ao longo dos anos, em grande medida por delegação e incapacidade do sistema político de resolver problemas de sua competência, tem sido a propositura de uma série de iniciativas legislativas voltadas a restringir as competências do Supremo, a limitar o poder e restringir os mandatos dos ministros, assim como medidas legislativas voltadas a neutralizar decisões do Supremo, contrárias a interesses grupos parlamentares, especialmente os mais conservadores.

A aprovação de lei reestabelecendo o marco temporal, no mesmo dia em que o Supremo declarou a tese inconstitucional, e a aprovação, pelo Senado, de PEC voltada à criminalização do consumo de drogas, buscando preventivamente esvaziar a decisão tomada pelo tribunal nesta última semana, são exemplos claros desse tipo de retaliação.

Esse cabo de guerra não é incomum em circunstâncias onde prevalece uma grande distância entre o que pensam os membros do Legislativo e os que ocupam a cúpula do Judiciário. No caso brasileiro, no entanto, há que se ponderar que a maioria conservadora que passou a dominar o Legislativo está distante não apenas do pensamento médio dos membros do Supremo, mas também das diretrizes adotadas pela Constituição de 1988.

O dilema colocado ao Supremo nessas circunstâncias é como reagir a essas retaliações oriundas de um parlamento insatisfeito com a Corte e com a própria Constituição?

Uma primeira alternativa é dar um passo para atrás e buscar minimizar a zona de conflito, flexibilizando a defesa de direitos de cunho "progressista" e se eximindo de controlar atos ilegais perpetrados por membros da classe política.

Uma segunda tentação, que parece estar ocorrendo no caso do marco temporal, é transformar a Corte Constitucional, que tem por missão maior garantir direitos de minorias vulneráveis, em uma câmara de negociação.

Em ambas as hipóteses o risco é fragilizar a Constituição, transformando-a em um documento facultativo, que pode ser moldado por aqueles que têm mais poder.

Uma terceira alternativa, que certamente contribuiria para reestabelecer um equilíbrio mais saudável e pertinente entre os Poderes, parece, no entanto, sofrer resistências internas, pois exigiria uma capacidade de autocontenção e especialmente de contenção das prerrogativas individuais dos ministros.

A estratégia seria fortalecer a colegialidade, qualificar o processo de deliberação, ampliar a consistência e coerência na aplicação da lei, estabelecer posturas interpretativas que reduzissem a discricionariedade judicial, gerando precedentes capazes de orientar e estabilizar as expectativas dos jurisdicionados.

Também seria indispensável nesse processo que o Supremo adotasse regras de conduta voltadas a fortalecer a sua imparcialidade.

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NA GAIOLA PATRIARCAL, AS MULHERES SÃO CULTURALMENTE ANULADAS

Muniz Sodré, Folha de S. Paulo

A manutenção do patriarcado está na raiz da feroz política de Estado antifeminista

"Homens sem mulheres, uma piada cruel", esta frase de história passada num campo de prisioneiros aliados na Segunda Guerra pode ser interpretada como machista. Seria mera queixa de carência sexual. No texto, porém, soa como aguda reflexão sobre a condição masculina entregue a si mesma, sem a alteridade feminina.

A democracia liberal e a vulgarização da psicanálise habituaram a consciência moderna a apostar na diferença genital como marca exclusiva de uma ética da alteridade sexual. No entanto, "há situações em que a diferença não é a priori recusa de similaridade" (Achile Mbembe em "La Domination Universelle"). Quer dizer, é preciso buscar além da genitalidade pontos comuns entre os sexos.

Esses pontos são recusados pelo patriarcalismo, dominação libidinal do corpo do outro (a mulher, o escravo), reduzindo-o à relação genital. Sabe-se que os escravistas islâmicos davam nomes femininos (Jasmine e outros) a seus escravos para melhor domínio dos corpos submetidos. Não existe colonialismo nem escravismo sem submissão corporal aos colonizadores. Vale residualmente para as esposas do período colonial, as sinhás.

Donde outro sentido para "homens sem mulheres". Na gaiola patriarcal elas são culturalmente anuladas, pois o feminino é princípio simbólico maior do que a reprodução. A comparação materialista da mulher ao operário por produzir humanidade ainda é uma redução cruel. A percepção disso nas lutas feministas intensifica-se com o sentimento de que a maternidade persiste como situação neocolonial, isto é, dentro de uma velha constelação masculina de poder.

Isso não acontece sem violência. A manutenção do patriarcado está na raiz da feroz política de Estado antifeminista. No Afeganistão, o Talibã apagou a figura da mulher na cena pública. Nas ditaduras petrolíferas, uma fálica arquitetura erige-se à sombra de tenebrosa opressão feminina. No Irã, velhos enforcam jovens por cabelos à mostra. O machismo, paixão moral pelo duplo anatômico de si mesmo, evidencia temor mítico e ódio ao feminino. Mas também expõe a conexão profunda do patriarcado com o racismo, na medida em que a diferença sexual termina concebendo mulher como raça além da masculina.

Só que nada impede as mutações orgânicas do sexo e do gênero, cujo horizonte é a autonomia corporal. Essa é a meta política de uma frente inovadora de luta, em que mudar o mundo implica reumanizar-se, mudar a si mesmo. Isso já transparece na reação social à leniência para com estupradores. Na memória coletiva ainda ressoa a permissão abjeta de um governador: "Estupra, mas não mata!" Entre nós, um sórdido projeto de lei antiaborto, leia-se defesa do estupro, retornou à cloaca. Espera-se que seus autores tenham o mesmo destino.

IMAGEM: Médica e paciente dão as mãos durante aborto em Rosário, na Argentina, onde o procedimento é permitido - Virginia Benedetto - 8.jun.24/Folhapress

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LULA ESCOLHE SEU JOGO

Bruno Boghossian, Folha de S. Paulo

Lula escolhe seu jogo e tenta ajustar coalizão de eleitores para 2026

Falas das últimas semanas indicam um presidente convencido a depositar mais fichas na clivagem socioeconômica

O falatório de Lula sobre economia nas últimas semanas revela mais que a tática para enfrentar as pressões por um corte nos gastos do governo. A maneira como o presidente enquadra esse conflito define seu jogo para o restante do mandato e aponta para um ajuste na base de eleitores com que ele pretende chegar a 2026.

Na campanha passada, o petista concorreu com um programa que reproduzia sua plataforma de redistribuição de renda. A disputa, no entanto, carregou outros fatores que ganharam relevo em grupos estratégicos, notadamente a repulsa à gestão Bolsonaro, o assalto ideológico daqueles anos e o risco à democracia.

Lula não abandonou esses últimos elementos, mas se mostra convencido a depositar uma quantidade crescente de fichas na clivagem socioeconômica. Em reação ao Banco Central e às oscilações do mercado, o presidente escolheu uma contraposição clara entre elite e povo.

São indícios prematuros de um caminho político que Lula já trilhou em mandatos anteriores. Agora, a rota está no discurso que acusa a Faria Lima de ganância excessiva e também norteia a delimitação do que poderia ser um ajuste nas contas do governo. A restrição vem na forma de um foco nos subsídios dados às empresas, na bronca aos que "não pensam" no povo e no veto a mudanças em benefícios sociais.

Há um punhado de explicações para o investimento nessa divisão. A principal talvez seja o risco de uma apatia do eleitorado com ganhos econômicos recentes. O presidente opta por um discurso de agitação para convencer uma fatia larga do país sobre o peso das ações do governo.

Lula também faz uma aposta para 2026. Ele busca ampliar a participação da baixa renda em sua coalizão de eleitores para uma disputa em que a ameaça de Bolsonaro talvez não tenha a ressonância que, em 2022, garantiu uma votação mais diversa. Para completar, o petista tenta soldar o vínculo com esse grupo a partir de uma liga econômica e reduzir o apelo conservador que facilitou o avanço da direita no território.

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PROPOSTA DE TAXAR OS RIQUÍSSIMOS

Celso Rocha de Barros, Folha de S. Paulo

Brasil está fazendo o certo com proposta de taxar os riquíssimos

País vai apresentar ao G20 ideia de taxação dos bilionários globais

O mundo tem cerca de 3.000 pessoas com patrimônio superior a US$ 1 bilhão. Se esse número fosse o público pagante de um jogo de futebol, seria um dos menores do atual Brasileirão. Esse pequeno grupo tem abocanhando uma parte cada vez maior da riqueza mundial. Em 1987, os 0,0001% mais ricos do mundo controlavam cerca de 3% da riqueza do mundo. Em 2024, esse número subiu para 13%. É muito pouca gente controlando muito dinheiro.

Os números são do estudo encomendado pelo governo Lula ao economista francês Gabriel Zucman, um dos grandes estudiosos de desigualdade de renda do mundo. O estudo, "A blueprint for a coordinated minimum effective taxation standard for ultra-high-net-worth individuals" ("Proposta para um padrão de taxação efetiva mínima para os indivíduos de riqueza ultra-alta"), foi publicado nos últimos dias.

O governo brasileiro pretende apresentá-lo ao G20, o grupo dos 20 países mais ricos do mundo, que o Brasil atualmente preside.

Zucman propõe que todos os países concordem em taxar os bilionários em pelo menos 2% de sua riqueza. Um esforço coordenado ajudaria a contornar uma das grandes dificuldades dos impostos sobre grandes fortunas: o risco dos muito ricos enviarem seus recursos para fora do país, como aconteceu alguns anos atrás com a Colômbia. O economista francês estima que o imposto proposto arrecadaria algo entre US$ 200 bilhões e US$ 250 bilhões por ano.

Mas os ricos não parariam de investir? Bom, atualmente, sempre segundo Zucman, a riqueza detida pelos bilionários lhes rende, em média, 7,5% ao ano (7,2% após a cobrança de impostos). Com a nova alíquota, renderia 5,5% ao ano. Ainda é um bom trocado.

Notem que a iniciativa seria global, mas cada país arrecadaria seu próprio imposto e gastaria como quisesse. Em si, a proposta não implica em redistribuição de renda do norte para o sul global.

O governo brasileiro chegou a sondar os países ricos sobre uma outra proposta, a da Nobel de economia Esther Duflo, que poderia ser complementar à de Zucman. Duflo propõe que a grana arrecadada com o imposto de Zucman seja gasta para ajudar os países pobres a se adaptarem ao aquecimento global. Afinal, os países pobres contribuem pouco para o aquecimento global, mas sofrem muito com suas consequências.

Haveria algum grau de coordenação global para esse gasto, mas Duflo propõe que a burocracia envolvida seja mínima: a ideia seria que, por exemplo, se a temperatura atingisse um nível X em áreas sob risco (na África subsaariana, por exemplo), o sistema disparasse algo como um Pix para a população local, automaticamente.

Quando o Brasil trouxe a proposta de Duflo para a discussão, vários países ricos discordaram. Concordam que é imoral que os riquíssimos paguem menos imposto que o resto da população, mas preferem utilizar o dinheiro arrecadado com o imposto de Zucman para socorrer seus próprios pobres.

Por isso, o Brasil deve bancar apenas a proposta de Zucman diante do G20. A proposta de Duflo, como outras semelhantes, devem continuar na discussão. Como me disse a vencedora do Nobel em 2019 na semana passada, essa luta não é uma corrida de cem metros, é uma maratona.

Não sabemos se o Brasil conseguirá convencer os países ricos, mas é bom poder voltar a dizer que o Brasil está fazendo o certo.

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O REAL NÃO FOI SÓ UM PLANO ECONÔMICO

Aloizio Mercadante, Folha de S. Paulo

Programa teve êxito contra a inflação, mas não garantiu a retomada do crescimento

Plano Real teve sucesso em acabar com a alta inflação, diminuindo o grau de indexação da economia brasileira. A Unidade Real de Valor (URV) permitiu a saída de forma criativa e organizada da alta inflação inercial, sem congelamento de preços. Outro elemento crucial foi a renegociação e a securitização da dívida externa pelo Plano Brady.

Na preparação do Real, o governo renegociou a dívida externa velha, abriu a conta de capitais e elevou brutalmente o juro real, para evitar fuga de capitais domésticos e atrair capital de curto prazo, o que viabilizou a transição da URV para o Real.

A valorização inicial do câmbio foi essencial para a rápida redução da inflação, mas trouxe um alto custo: o início da era de elevados juros reais. De 1994 a 1999, a taxa básica média de juro real foi de 22% ao ano.

Para atrair recursos externos e promover o ajuste fiscal, o governo liquidou ativos estatais por preços reduzidos, sem o planejamento de uma política industrial e sem avaliação estratégica dos desdobramentos.

Depois de 30 anos, a história mostra que o Plano Real teve êxito ao reduzir a inflação, mas não em garantir a estabilidade macroeconômica e a retomada do crescimento. Para reeleger FHC, a âncora cambial foi prorrogada, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, empurrando o país para grave crise cambial, econômica e social.

Do lado financeiro, o déficit em transações correntes aumentou de 2,5% do PIB, em 1995, para 4,5% do PIB, em 1999. Do lado social, o arrocho monetário e fiscal produziu alta no desemprego, de 4,6%, em 1995, para 7,6%, entre 1995 e 1999.

O governo FHC expôs o país a um ataque especulativo decorrente do desequilíbrio das contas externas, recorreu ao FMI e se submeteu ao chamado "Consenso de Washington". Mesmo assim, não evitou nova crise cambial e novo pedido de ajuda ao FMI (2002), selando o destino dos governos do PSDB, que não venceram mais eleições presidenciais e amargaram uma crise partidária, agravada pelo apoio ao golpe de 2016 e pela adesão de lideranças ao bolsonarismo.

A estabilização do Plano Real só se completou no governo Lula, quando o país quitou a dívida com o FMI e começou a acumular reservas internacionais, que até hoje nos dão autonomia de política econômica. Do lado fiscal, a estabilização está incompleta. Esgotaram-se as estratégias de queima de patrimônio público e de metas de resultado primário ambiciosas, que geraram uma política fiscal pró-cíclica que aprofundou as flutuações da economia.

Ao analisar o Plano Real, o PT reconheceu o mérito da desindexação da economia, mas denunciou a manutenção da âncora cambial, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, e o elevado custo econômico e social, que precarizou a vida da população.

É preciso reconhecer a competência e a inovação da equipe técnica que criou o Plano Real, em particular Pérsio Arida e Lara Resende. Eles têm imensa responsabilidade pelas vitórias do PSDB, mas pressões eleitorais no ninho tucano impediram a saída organizada da âncora cambial e empurraram o país para grave crise cambial, desindustrialização, endividamento público elevado e recessão econômica prolongada.

A despeito das nossas divergências, o país sente saudade do tempo em que a polarização se dava entre o PT e o PSDB. Naquele período, havia disputa acirrada, mas qualificada, sem renunciarmos ao compromisso com o Estado democrático de Direito e com a cidadania.

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O PLANO REAL E A DEMOCRACIA

Míriam Leitão, O Globo

Um fio liga as duas maiores conquistas brasileiras: o real é obra da democracia e ajudou a consolidar a democracia

Persio Arida sempre diz que o Plano Real foi obra da democracia. Há um fio que liga as duas conquistas. A estabilização também consolidou a democracia. Vivíamos o caos monetário e se aquela devastação continuasse o país perderia a confiança nos governos civis. O próprio plano, ao ser explicado antecipadamente por Fernando Henrique e, depois, por Rubens Ricupero, virou uma obra coletiva. Não haveria sucesso do plano sem o povo. Conceitos complexos foram entendidos pela população. FHC chamou isso de pedagogia democrática.

A alta dos índices de preços ficou maior na democracia. Saiu do patamar das centenas para o de milhares por cento. Contudo, a gênese daquele horror econômico ocorreu na ditadura que escolheu, através da correção monetária, conviver com inimigo tão perigoso. Havia ainda a humilhante dívida externa também herdada dos militares. A destruição de valores que a hiperinflação produz, num país desigual, demoliria a confiança na democracia nascente. Seria fácil prosperar o discurso autoritário.

O povo vivia aflições e espantos. Uma lembrança nítida que Mary Cheng, hoje servidora do Banco Central, tem da infância era do supermercado à noite. A mãe a levava no início de cada mês, depois do trabalho e lá ficava até a loja fechar. Sua tarefa era correr atrás do produto que não tivesse sido remarcado. Tinha que ser mais rápida que o etiquetador. Buscar em cada lata a ausência da última etiqueta. “Não era apenas eu. Eram várias crianças correndo no supermercado. Parecia uma gincana. Era uma coisa muito fora do padrão normal, crianças saindo do supermercado à meia noite”. Lembranças assim estão espalhadas pelo Brasil.

O acaso foi caprichoso nessa história. O primeiro presidente eleito pelo voto direto caiu. O vice que assumiu anunciou, no sétimo mês do seu curto mandato, seu quarto ministro da Fazenda. O que sinceramente Fernando Henrique podia fazer em 19 meses? Ele liderou a grande obra da estabilização brasileira. Itamar Franco sempre terá o mérito de ter tornado o plano possível e o ter aprovado, mesmo quando discordava.

Era sábado quando o ministro Fernando Henrique, recém-nomeado, chegou dirigindo na casa de André Lara Resende, em São Paulo, e perguntou: “o que vamos fazer, André?”. Foi a primeira conversa. A segunda foi no apartamento de FHC em Brasília. Ele convocou uma reunião. Edmar Bacha chegou mais cedo e começou a rabiscar num papelzinho azul os primeiros traços do que seria o plano.

Eles sabiam o caminho porque antes houve muito debate na PUC do Rio. Economistas jovens, com PHD no exterior, se juntaram na PUC no final dos anos 1970. Criaram o hábito de reuniões frequentes com muito debate sobre os temas que infelicitavam o país: a dívida externa, a inflação. Nesse debate, as mentes brilhantes de Persio Arida e André Lara Resende produziram o documento principal, o Plano Larida, que propunha introduzir uma moeda indexada na economia. Aos poucos, ela substituiria a moeda inflacionada.

Levar o plano à realidade foi uma história de bastidores emocionantes. Fernando Henrique pediu demissão três vezes na reunião para a aprovação da URV, domingo 27 de fevereiro de1994. A luta da Fazenda era impedir que ideias exóticas fossem incluídas na arquitetura frágil da moeda virtual que seria o caminho para o real. FHC venceu porque a cada impasse avisava que estava indo embora com o seu time. Ricupero fez o mesmo nas vésperas do plano, quando um enviado do Planalto desembarcou na Fazenda com perguntas sem sentido. Levantou-se no meio da reunião e foi ao presidente disposto a entregar a carta de demissão. Esse desapego ao cargo foi fundamental.

Como convencer, na era analógica, um país cansado de experimentos econômicos, a converter preços e contratos numa moeda fisicamente inexistente? A população aderiu à URV em tempo recorde, ela era a véspera do real. Ricupero caiu após uma fala imprudente, quando a nova moeda tinha apenas três meses. Em entrevista, agora, ele me disse que deitou naquele dia se sentindo “uma folha de papel que se dissolvia”. Queria não acordar.

No meu livro chamei essa história de “saga brasileira”. Assim a vejo até hoje. Épica. Acabo de revisitá-la num documentário. Foi uma travessia que durou anos, com momentos de perigo e tensão. O fator decisivo foi a livre adesão dos brasileiros. É a maior história que eu cobri na minha vida de jornalista. Um plano na democracia e pela democracia.

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40 ANOS DO PLANO REAL

Roberto Luis Troster, Correio Braziliense

O correto seria falar do processo do real, e de 40 anos em vez de 30. A bem da verdade, começou em 1984, com a publicação do trabalho conhecido como proposta Larida, de Pérsio Arida e André Lara Resende

Mais do que plano, o correto seria falar do processo do real, e de 40 anos em vez de 30. A bem da verdade, começou em 1984, com a publicação do trabalho conhecido como proposta Larida, de Pérsio Arida e André Lara Resende, e teve como última medida a publicação do decreto presidencial oficializando a meta de inflação contínua em 3%, na quarta-feira passada, 26 de junho de 2024.

Não foi uma ideia mágica que fez a mudança. Foi um trabalho que combinou teoria econômica, habilidade política, aprendizado com os erros e criatividade. Além da proposta Larida, que inspirou o Plano Real, houve um processo de aprendizado com o Plano Cruzado, em 1986, depois o Plano Bresser, o Plano Verão, o Plano Collor I e o Plano Collor II. Todos fracassaram em acabar com a inflação, mas deixaram ensinamentos para a formulação do Plano Real.

Um ensinamento importante foi a comunicação. Enquanto os planos anteriores eram comunicados na véspera, o Real começou a ser anunciado quase um ano antes. A academia, a classe política e a população tiveram explicações detalhadas das causas da inflação e da estratégia proposta para acabar com ela.

As primeiras medidas foram em 1993, com destaque para a abertura da caixa-preta, que deu mais transparência à atuação do Banco do Brasil e melhorou o controle das políticas monetária e cambial. Outra medida foi a criação do Fundo Social de Emergência, que facilitou a geração de superavits fiscais.

Em 1º de março de 1994, começou a fase da Unidade Referencial de Valor (URV) e atrelou todos os preços em cruzeiros reais ao novo padrão, que era alterado diariamente. Em 1º de julho, data comemorada amanhã, foi feita a transição, e a sincronização retirou pressões inflacionárias da nova moeda, o real.

No primeiro semestre do Plano Real, tentou-se o controle de agregados monetários, que foi substituído pelo uso da taxa de juros como principal instrumento. A política cambial também mudou; em um primeiro momento, até março de 1995, flutuou e, depois, passou a ser desvalorizado à taxa de 7% ao ano. 

A boa comunicação explicando o real foi importante para a sua aceitação. Foi majoritária, mas não total. O fracasso dos cinco planos anteriores, todos diferentes entre si, deixou a sensação de que era mais um apenas para alguns. O convencimento de que esse era definitivo demorou, mas chegou.

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O sucesso inicial foi meritório, a economia cresceu e a inflação despencou. Todavia, os sinais de esgotamento apareceram em 1997, com um desempenho mais fraco da atividade econômica e pressões fortes no balanço de pagamentos. O governo atuou dois anos depois, quando  desvalorizou o real, adotou o regime de metas de inflação e a lei de Responsabilidade Fiscal. Corrigiu a rota.

Outro avanço foi uma abertura maior do sistema financeiro, permitindo a entrada de mais bancos estrangeiros, uma maior transparência do mercado e uma preocupação com uma regulamentação mais eficiente. Por outro lado, registraram-se algumas falhas na gestão prudencial, na questão cambial e no controle dos agregados monetários.

Dois pontos a destacar: regimes de política econômica se esgotam no tempo e o imobilismo tem custos. Na maioria dos casos, as alterações de rota ocorrem, ou após uma crise, ou após uma mudança de governo. Um dos méritos do Plano Real é que alguns dos ajustes se anteciparam aos problemas. A medida de meta contínua de inflação em vez da meta do ano-calendário, oficializada semana passada, é um exemplo.

O Plano Real promoveu uma transformação estrutural irreversível na economia brasileira e criou condições para um desenvolvimento sustentável. Mais que um plano de estabilização criativo e eficiente, foi, e continua sendo, um processo de ajustes ao longo do tempo, em que todos os governos deram sua contribuição.

Há necessidade de mais ajustes para que o país usufrua mais do potencial que o Plano Real propicia. Há também uma agenda de reformas que deve ser retomada. Existem alguns problemas estruturais importantes que devem ser superados — entre os quais, podem ser destacados a tributação das operações financeiras, o controle fiscal, a reforma administrativa e o regime cambial. Um passo de cada vez faz com que o Brasil avance cada vez mais.

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UM CAPÍTULO DO FRACASSO DO CENTRO LIBERAL

Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo

Derrotas de Macron são mais um capítulo do fracasso do centro liberal

Presidente da França queria reduzir esquerda e direita a extremos minoritários

A ultradireita deve ter perto de 37% dos votos no primeiro turno da eleição legislativa da França, neste domingo. A coalizão de esquerda, ecologistas e centro-esquerda teria 29%. A coalizão de centro, liderada pelo presidente da República, Emmanuel Macron, ficaria com 20%. O que restou da centro-direita, 7%. É o que diziam pesquisas (Ifop, Ipsos).

Suponha-se que viesse a ser essa a composição da Assembleia Nacional, o que é bem incerto, dado o sistema eleitoral. Seria o resultado, em parte, do fracasso político de Macron.

Seria também mais um capítulo dos fracassos de público dos partidos de centro. Isto é, dessa convergência de centro-esquerda e centro-direita no centrismo liberal-tecnocrático, evidente desde os anos 1990 no mundo rico.

Macron teria de chamar a ultradireita para formar um governo minoritário, a Reunião Nacional, de Marine Le Pen. Apenas por milagre haveria aliança do "Juntos" de Macron com a salada da esquerda (socialistas, ecologistas e "França Insubmissa", esquerdona tradicional, majoritária nessa coalizão).

Macron foi eleito presidente em 2017. Incentivou a eleição de deputados novatos. Pregava a oxigenação do sistema político, a reaproximação de governo e cidadãos, a modernização da França (liberalizar um pouco). Sentia o cheiro de queimado no sistema político.

Levava consigo parte das sobras da ruína do Partido Socialista (centro-esquerda); começou a sugar o sangue da centro-direita, que também minguou. Pretendia criar um grande centro, um "mundo novo", relegando esquerda e direita para extremos com votações minoritárias.

Parece que não deu certo.

O projeto de renovação política logo murchou. Macron viria a se tornar versão tardia da "Terceira Via", de líderes como Bill Clinton (presidente democrata dos EUA, 1993-2001) e Tony Blair (premiê trabalhista britânico, 1997-2007).

A Terceira Via era o nome fantasia de governos liberal-tecnocráticos, da indistinção de centro-esquerda e centro-direita. Sob vários aspectos, são o motivo político das crises socioeconômicas do século 20 e, pois, da atual crise antissistema, com derivas autoritárias.

Macron não soube lidar com a revolta popular dos "coletes amarelos", que começou como protesto contra um imposto verde sobre combustíveis, em 2019. Fez reforma trabalhista, baixou impostos sobre empresas. O povo miúdo e do interior ficou meio na mesma.

Reeleito em 2022, abraçou de vez a centro-direita. Endureceu leis para imigrantes. Enfiou pela goela dos franceses, por decreto, uma reforma da Previdência que causou protestos de rua gigantescos (2023). Sua aprovação desceu então a 26% (está em 30%). No começo do governo, em 2017, passava de 60%. Na epidemia, ficou em torno de 40%.

Foi do Partido Socialista. É quadro da cúpula intelectual, cultural e política da França. Graduou-se em filosofia, formou-se no ninho da elite executiva, na Escola Nacional de Administração, fez mestrado em políticas públicas, foi executivo do banco Rotschild.

Pouco depois de eleito, ficou conhecido como "presidente dos ricos", arrogante, imperial, "Júpiter". O crescimento do PIB per capita desde 2017 foi de 5%. Melhor que os 3% da Alemanha, pior do que Itália, Espanha, Portugal e da média da eurozona.

Já houve "coabitação" (presidente de um partido, primeiro-ministro e ministério de outro). Mas são raras as coalizões ideológicas mistas na França. A exceção maior foi na Quarta República (1946-58), que teve 22 governos em 12 anos, em contexto político muito diferente, instável e na iminência de revolução, que não cabe rememorar aqui, hoje.

Ora não há diálogo possível no "tripartismo", como até houve no pós-guerra (Macron chama os programas adversários de ameaça de "guerra civil"). Há limites políticos, econômicos, institucionais e internacionais para os planos da esquerda e da ultradireita. O plano macronista de criar um centro grande, dominante e renovado, não dá conta das crises sociais e de outras insatisfações do eleitorado.

O mandato de Macron vai até 2027. Até lá, governos parlamentares podem cair em série e paralisar o país. Em meados de 2025, pode haver outra eleição parlamentar.

Difícil é achar saída para a crise do século 21.

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APAGÃO DE BIDEN

Bernardo Mello Franco, O Globo

Apagão de Biden deixou mentiras e disparates de Trump em segundo plano

Debate escancarou fragilidade de democrata para milhões de eleitores americanos

O debate ainda não contava dez minutos quando Joe Biden sofreu o primeiro apagão. Questionado sobre o déficit público, o presidente tentou articular um raciocínio sobre impostos e o sistema de saúde. No meio da fala, cerrou os olhos, baixou a cabeça e pareceu esquecer o que queria dizer.

A desorientação se repetiu outras vezes ao longo do duelo televisivo. Com olhar perdido, Biden se enrolou com as palavras, teve lapsos de memória, deixou frases pela metade. Donald Trump tripudiou da situação e desafiou o rival a fazer um teste cognitivo. “Eu realmente não sei o que ele disse no fim da última frase. E acho que ele também não sabe”, debochou.

O debate de quinta-feira escancarou a fragilidade de Biden para milhões de eleitores americanos. Sem a ajuda do teleprompter, o democrata se mostrou incapaz de encadear argumentos e defender seu legado. Pior: reforçou o temor de que não teria saúde física e mental para exercer um segundo mandato.

Biden foi o presidente mais velho a se eleger nos EUA. Se isso não foi problema na disputa de 2020, tornou-se tema central em 2024 pelas razões expostas na TV. Ele completará 82 anos em novembro. Se reeleito, ficaria no poder até os 86. “Passei metade da minha carreira sendo criticado por ser muito novo”, desconversou o presidente, quando a mediadora Dana Bash mencionou a preocupação com sua idade.

O democrata se elegeu senador pela primeira vez em 1972, quando o noticiário americano se dividia entre a Guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate. Era um mundo bem diferente, e os políticos não viviam tão expostos aos olhos do público. Hoje um presidente não consegue dar dois passos longe da mira de uma câmera, e qualquer gafe ou tropeço viraliza nas redes em poucos minutos.

Na véspera do debate, pesquisa Gallup informou que 67% dos americanos já consideravam Biden velho demais para governar. Só 37% afirmavam o mesmo sobre Trump, embora a diferença de idade entre os dois seja de apenas três anos.

Na quinta, a preocupação de lugar ao pânico entre os democratas. Aliados torcem para que Biden desista de concorrer, mas ninguém ousa defender a ideia em público. Faltam menos de dois meses para a convenção que indicará oficialmente o candidato do partido, e o presidente não dá sinais de que vá largar o osso por iniciativa própria.

Depois do ataque ao Capitólio em 2021, parecia inimaginável que Trump pudesse retornar ao poder. A radicalização do eleitorado republicano e a impopularidade de Biden fizeram da distopia uma ameaça concreta. Agora o homem que tentou destruir a democracia americana arrisca voltar à Casa Branca pelo voto.

No debate, ele mostrou que continua o mesmo. Empilhou mentiras, insultou adversários, instigou o medo e o ódio contra imigrantes. Diante dos apagões de Biden, seus crimes e disparates ficaram em segundo plano. Já foi uma vitória para quem deveria estar atrás das grades, não em cima do palanque.

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A PF E O MP NO TESTE DAS AMERICANAS

Elio Gaspari, O Globo

É nas duas instituições que se depositam as esperanças de que a maior fraude corporativa da história seja exposta ao público

Houve algo de teatral na operação da Polícia Federal (PF) para trazer de volta à vitrine o escândalo da rede varejista Americanas. Depois do vexame da Comissão Parlamentar de Inquérito, que não identificou responsáveis por um calote de R$ 47,9 bilhões, é nela e no Ministério Público que se depositam as esperanças de que a maior fraude corporativa da história de Pindorama seja exposta ao público. É coisa de R$ 25,2 bilhões.

Na sua expressão mais simples, já se sabe o seguinte:

1) Miguel Gutierrez, o CEO da Americanas por mais de uma década, tinha uma sala exclusiva no prédio da empresa, onde só ele entrava. A partir de julho de 2022, quando soube que seria substituído no comando da empresa, começou a transferir bens para parentes e vendeu ações da Americanas no valor de R$ 171,8 milhões. Com nacionalidade espanhola, Gutierrez deixou o Brasil em 2023. Na semana passada foi expedido um mandado de prisão contra o doutor.

2) No segundo semestre de 2022, quando a Americanas se apresentava ao mercado como um prodígio de gestão, diretores da empresa desfizeram-se de ações da empresa no valor de R$ 241,1 milhões. Vinte dias antes do estouro, Anna Saicali, uma de suas diretoras, transferiu para um filho um patrimônio de R$ 13 milhões e vendeu ações da empresa no valor de R$ 59,6 milhões. Contra ela a PF também expediu um mandado de prisão. Anna Saicali deixou o Brasil.

Outro diretor, José Timotheo de Barros, desfez-se de ações da Americanas por R$ 20,7 milhões.

A investigação recente estimou que a fraude pode ter começado em 2007. Em agosto de 2022, diretores da Americanas começaram uma operação para escondê-la.

Tudo bem, aceitando-se que ninguém havia desconfiado. Mais: como seria possível esconder a inexistência de R$ 25,2 bilhões? Sobretudo se, de uma hora para outra, os diretores começaram a vender suas ações.

Para que um esquema desses ficasse de pé, seriam necessários milhões de otários dentro e fora da Americanas. Se isso pudesse ser possível, sabe-se agora que no dia 27 de dezembro de 2022 a nova diretoria foi informada do que se chamaria de “inconsistência contábil”.

A Polícia Federal já localizou contubérnios entre a turma da Americanas e funcionários de bancos encarregados de analisar seus números, bem como acertos com dois bancos para direcionar aplicações. A PF e o Ministério Público foram além da superfície do caso.

A Americanas explodiu em janeiro de 2023. Passou-se mais de um ano e até agora ninguém havia sido responsabilizado. A Comissão de Valores Mobiliários abriu inquéritos que ainda não fulanizaram responsáveis. (Nos Estados Unidos, o escândalo da empresa de energia Enron estourou em 2001. Um ano depois seu gênio financeiro tornou-se réu e em 2004 tomou uma cana de dez anos.) No Brasil, até agora, só foram penalizados milhares de acionistas, centenas de funcionários que perderam os empregos e oito mil credores.

Quem decidiu sacar R$ 800 milhões?

O país está assistindo ao funeral togado da Lava-Jato. A ação da Polícia Federal e do Ministério Público pode impedir que aconteça o mesmo com a Americanas.

A turma da varejista era audaciosa. Remunerava-se regiamente e trocava mensagens explicitando a maquiagem de seus balanços. Se tudo isso fosse pouco, no dia 11 de janeiro de 2023 tentaram sacar R$ 800 milhões da conta da empresa no banco BTG Pactual. O BTG não pagou.

As investigações poderão revelar o processo decisório que instruiu essa iniciativa. Afinal, mesmo admitindo que ninguém sabia da fraude, está comprovado que o novo CEO, Sérgio Rial, soube do rombo no dia 2. (Seu diretor financeiro soube que havia gatos na tuba uma semana antes.) No dia 4 começou-se a falar em “inconsistências contábeis”. No dia 5, Rial contou o caso ao acionista de referência Carlos Alberto Sicupira, que, nas suas palavras, ficou “chocado”. Sicupira era um dos astros do que se supunha ser um novo tipo de gestão.

No dia 11, horas depois da tentativa de saque, a Americanas explodiu.

A fraude da Americanas é o maior escândalo corporativo da história de Pindorama. Não envolve um só centavo de dinheiro público. Tudo coisa da iniciativa privada, com personagens que se apresentavam como modelares, meritocráticos e inovadores. (A rede varejista pagava em até 200 dias contas que devia ter pago em 90, mas essa é outra história.)

Desde 2023 o caso da Americanas inova também tecendo o grande tapete para debaixo do qual tenta-se varrer o escândalo.

A entrada da Polícia Federal e do Ministério Público na cena é uma esperança.

Valeria a pena que colocassem na operação um delegado e um procurador munidos de um mapa dos erros da Lava-Jato. Eles teriam a tarefa de alertar os colegas para os riscos de ações teatrais e da manipulação da imprensa. No caso da Americanas, nada disso é necessário. Basta seguir o roteiro de fatos, cifras e golpes desprezados pela Comissão Parlamentar de Inquérito.

Política americana

O crescimento da candidatura presidencial de Donald Trump disseminou a mania global de se falar mal do partido Republicano. É verdade que ele segue Trump com suas malfeitorias, mas pouca atenção se dá à decadência do partido Democrata.

Os democratas carregam Joe Biden porque não conseguiram produzir nada melhor. Uma das raízes desse problema está na influência do casal Bill e Hillary Clinton com suas redes de alianças e interesses. Esse domínio explica, entre outras coisas, o afastamento do ex-presidente Barack Obama.

Lula 3.0

Lula acha que pode tudo, inclusive lidar com coincidências que refrescam a vida dos irmãos Joesley e Wesley Batista.

No segundo ano de governo pode-se tudo. A conta só chega durante a campanha eleitoral.

Grande Ricupero

Os 30 anos do Plano Real foram comemorados com autoexaltações da equipe de economistas que de forma brilhante conceberam sua moldura teórica. Infelizmente, na segunda metade do segundo tempo reconheceu-se a importância do papel de Fernando Henrique no Ministério da Fazenda. Infelizmente, deixaram como pitoresco coadjuvante o presidente Itamar Franco. Sem Itamar e sua decisão de tomar riscos, FH estaria condenado a disputar uma cadeira de deputado e os professores continuariam redigindo trabalhos acadêmicos.

Dessa fogueira de vaidades escapou, com brilho, o embaixador Rubens Ricupero, que substituiu FH na Fazenda. Foi um ministro correto e detonou-se dizendo que falava do que havia de bom e escondia o que havia de mau. Não sabia que estava sendo gravado e perdeu o cargo.

Relembrando esses tempos, disse ao repórter Luiz Guilherme Gerbelli:

“Caí porque disse muita bobagem.”

Ricupero completou 50 anos no serviço público sem ter dito outras bobagens e sem circular na porta giratória do mercado. Se as pessoas reconhecessem suas bobagens com a lisura de Ricupero, as coisas melhorariam bastante.

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O CORTE DE GASTOS É PARA VALER ?

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

Das cinco medidas de Haddad e Tebet, sobra uma, a que não tem a ver com corte nem gasto

Além de descumprir uma regra elementar de política externa, ao apoiar Joe Biden contra Donald Trump e correr o risco de trazer problemas para o Brasil, o presidente Lula está desmontando, uma a uma, as medidas dos ministros Fernando Haddad e Simone Tebet para cortar gastos. Das cinco, sobra uma, exatamente a que não caracteriza corte nem gastos, só combate a fraudes, que deveria ser mera rotina.

Se Lula de fato aprovou a lista em reunião com os ministros, como anunciado, ele disse uma coisa em privado e está fazendo outra em público. Ou... é tudo um jogo de cena, em que os ministros assumem medidas impopulares, dando a Lula a chance de vetá-las. Eles levantam a bola, Lula corta, a torcida aplaude. O foco continua sendo na receita, os gastos ficam pra lá.

O primeiro item da lista nem chegou a ser levado a sério, apesar de muito importante. Alguém está ouvindo falar em “fim dos supersalários”? Os que ganham acima do teto constitucional e juízes, promotores e procuradores podem dormir sossegados, com seus penduricalhos que consomem muitos milhões de reais.

O segundo item, também natimorto, foi a mudança na previdência dos militares. Lula

deixou claro que não admite, até com uma certa razão. Não pela proposta em si, que, mais cedo ou mais tarde, terá de ser discutida, mas porque não é hora de jogar a Defesa e a cúpula legalista das Forças Armadas contra suas tropas.

A lista continua com a desvinculação de pensões e aposentadorias do salário mínimo.

Lula descartou, em entrevista ao UOL: “Se eu acho que vou resolver o problema da economia brasileira apertando o mínimo do mínimo, eu não vou para o céu, eu ficaria no purgatório”. Um presidente com a marca da igualdade social, num país com tal desigualdade, não poderia dizer o contrário, mas qual a alternativa? A ameaça fiscal, ao fim e ao cabo, atinge exatamente a base da pirâmide.

O item cinco da pauta é a mudança dos pisos constitucionais da Saúde e Educação, que cai no mesmo caso. De um lado, a estimativa é de que consumam 112% do Orçamento até 2028, sem sobra para o resto, como habitação, auxílio-gás e defesa civil. Do outro, as duas áreas podem perder até R$ 500 bilhões, em nove anos, com a mudança. O que é mais justo, ou menos injusto? Escolha de Sofia.

Da lista, sobrou o pente-fino nos cadastros do INSS, que não tem a ver com corte nem com gastos, mas com fiscalização e fraude. Assim, o governo finge que está decidido a cortar, os aliados fingem que acreditam, Lula tira uma casquinha populista e tudo continua como está. O equilíbrio fiscal? Balança, mas não cai. Ou será que cai?

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O NAUFRÁGIO DE BIDEN ?

Dorrit Harazim, O Globo

Pelo futuro dos Estados Unidos, presidente não deveria correr o risco de eleger Donald Trump

Faltam dois meses até a convenção nacional do Partido Democrata, marcada para os próximos dias 19 a 22 de agosto, em Chicago. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, vencedor das arrastadas eleições primárias em que foi praticamente candidato único, aguardava apenas a consagração formal. A participação da escritora e líder espiritual Marianne Williamson foi efêmera, entrou em colapso na largada. E a tentativa do congressista pelo estado de Minnesota Dean Phillips, de 55 anos, para se manter no páreo chegou a ser considerada insolente pelos caciques do partido.

Tudo mudou ao longo dos 90 minutos de agonia e choque, na noite de quinta-feira, quando 47,9 milhões de telespectadores assistiram a um presidente dos Estados Unidos de esgar opaco, aspecto confuso e vulnerável, em busca de um raciocínio perdido. O naufrágio de Biden no primeiro debate com o oponente republicano, Donald Trump, sacudiu os democratas de alto a baixo. As primeiras horas após a debacle foram de “barata-voa”.

Os mais alarmados consultavam os estatutos partidários à procura de regras para substituir Biden antes da convenção nacional. Nada encontraram, por ser uma situação sem precedentes. Os mais catastrofistas chegaram a aventar a hipótese de ele renunciar ao mandato e abrir caminho desde já à vice, Kamala Harris. E os mais realistas sugeriram seu afastamento apenas da disputa eleitoral, deixando aos delegados à convenção a escolha de uma alternativa de última hora. Segundo a Ballotpedia, conhecida como enciclopédia da política americana, serão 4.672 os delegados aguardados em Chicago, 3.933 dos quais votam no primeiro escrutínio. Desses, Biden somou nas primárias 3.894 votos fechados. Na primeira rodada, basta ao candidato obter maioria simples para ser ungido. Se isso não ocorrer, há nova rodada e passam a votar os 739 delegados cujo voto não está vinculado (também conhecidos como “superdelegados”).

“Fale somente se for para melhorar o silêncio. Gandhi”, postou o congressista Phillips. No day after, em meio a todas essas conjecturas correndo soltas, Joe Biden parece não ter percebido a extensão da insegurança global gerada pelo desempenho na véspera. Reapareceu energizado, como se nada tivesse ocorrido, num comício em Raleigh, Carolina do Norte, e anunciou a sua arma para derrotar Trump em novembro:

— Pessoal, eu não caminho com a agilidade de antes, não falo com a fluidez do passado, tampouco sou o debatedor bom que já fui. Mas sei o que definitivamente sei: eu sei falar a verdade.

Por mais louvável que seja lembrar o valor da verdade em tempos atuais, isso não basta para impedir que uma figura tóxica como Trump, movido a instintos ferais, além de astuto e sem compromissos com a decência, volte a ser eleito para a Casa Branca. Biden tinha uma única missão no debate: tranquilizar os americanos de que estará apto, com 82 anos em janeiro, a assumir novo mandato de quatro anos como comandante em chefe do país. Não conseguiu, apesar de ter se trancado por uma semana em Camp David com 16 assessores e coaches, em meticulosa preparação para o embate. Uma réplica dos dois pódios foi montada na casa de campo presidencial, com simulação exata da posição dos dois moderadores da CNN, e vários assessores se revezando no papel do adversário. Nada adiantou: Trump pôde surfar à vontade numa vigorosa sucessão de mentiras colossais.

Ao final do debate, desorientado, Biden encontrou a saída do palco guiado pelo braço amigo de sua mulher. Sua chegada a Atlanta já deveria ter alertado sobre algo que não estava bem. Biden descera do Air Force One da Presidência, fizera uma saudação militar ao vento e rumara em direção à limusine sem perceber a galeria de autoridades que o esperava. A comitiva alinhada, incluindo o prefeito da cidade, não sabia o que fazer. Só então o presidente retornou ao pé da escada e cumprimentou um a um. Detalhe: a CNN fez o possível para não destacar esse “momento sênior” do presidente.

A grande mídia dos Estados Unidos, aliás, é corresponsável pelo espanto e pelo choque sentidos por meio mundo diante da fragilidade física e cognitiva de Biden no debate. Ao longo dos últimos três anos e meio, tanto a Casa Branca e sua equipe de comunicação quanto os caciques do Partido Democrata, boa parte da imprensa liberal e os familiares de Biden se dedicaram a minimizar o fator idade do presidente. Quando o conservador Wall Street Journal, poucas semanas atrás, publicou ampla reportagem sobre os momentos de ausência mental do presidente em reuniões e no exercício do poder, foi severamente criticado, até por outros jornais.

— Esse tema precisava ser levantado, mas nenhuma outra mídia de envergadura quis abordá-lo — contou à Semafor a diretora de redação do WSJ, Emma Tucker.

A reportagem é devastadora.

Em nome de sua biografia, pela sobrevivência do que resta do Partido Democrata e pelo futuro dos Estados Unidos, Joseph Biden não deveria correr o risco de eleger Donald Trump.

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PARA NÃO SUCUMBIR, LULA PRECISA ADAPTAR-SE À NOVA REALIDADE

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

Joe Biden, aos 81 anos, após perder o debate com Trump, resiste às pressões para desistir da reeleição. Repete o roteiro dos que não querem se retirar antes de o sol se pôr

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa hoje 546 dias de governo, 34 dias a menos do que o período em que esteve preso em Curitiba. São, portanto, 78 semanas, quase 18 meses e pouco menos do que um ano e meio de poder. Ao contrário de seus governos anteriores, divide o protagonismo político da nação com um Congresso conservador, que muitas vezes lhe dá uma invertida; um ex-presidente capaz de lhe fazer oposição de massas, o que antes era uma quase exclusividade do petismo; e governadores adversários — em São Paulo, Tarcísio de Freitas (PR); Minas Gerais, Romeu Zema (Novo); Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil); e Paraná, Ratinho Jr. (PSD).

A menos de 100 dias das eleições municipais, que se caracterizam por fortes disputas locais, o que se vê é uma tendência de polarização nas grandes cidades, protagonizada por Jair Bolsonaro, que está inelegível e precisa manter seu poder de influência elegendo o maior número possível de prefeitos aliados. Ao contrário, Lula pisa em ovos para não confrontar interesses locais de aliados poderosos, o que significa abrir mão de candidaturas petistas em muitas cidades, algumas de muita projeção nacional, como São Paulo — onde apoia Guilherme Boulos (PSol) — e Rio de Janeiro — vai de Eduardo Paes (PSD), o atual prefeito, que busca a reeleição. Se no âmbito nacional a polarização o beneficia, nas eleições municipais o atrapalha.

Será inevitável um balanço geral do ambiente político após as eleições e um ajuste de rota do governo, talvez até uma mexida forte na equipe ministerial, o que Lula tenta evitar —, mesmo em casos como o do ministro das Comunicações, Juscelino Filho (União Brasil), indiciado pela Polícia Federal (PF) por suspeita de desvio de verbas de emendas do Orçamento da União.

Quando Lula decidir se disputará ou não a reeleição, lá pelos mil dias de governo, um dos fatores que pesarão na balança será o resultado das eleições presidenciais dos Estados Unidos. Não por acaso, já manifestou apoio incondicional à reeleição do presidente Joe Biden.

As eleições americanas são para Lula o que os manuais de planejamento estratégico chamam de externalidade, uma variável que não depende do seu governo. Se Biden for reeleito, será positiva (oportunidade) e o assessor especial para relações internacionais Celso Amorim poderá continuar flertando com o antiamericanismo. Porém, será negativa (ameaça) caso Donald Trump continue favorito e vença a eleição, porque seu apoio ao candidato de Bolsonaro será inequívoco e ostensivo. A águia americana tem asas longas e voa longe, mas seu rumo dependerá desse resultado.

O debate eleitoral entre Biden e Trump mostrou que as eleições americanas representam uma ameaça para o governo Lula. O atual presidente dos EUA, que isolou o líder russo Vladmir Putin em praticamente todo o Ocidente e tenta conter o avanço da China na economia global, era um homem acuado, hesitante, com falhas de raciocínio e frases desconexas ou incompletas.

Mesmo com todas as mentiras de Trump, seu desempenho deixou em pânico os democratas e acendeu uma luz amarela nas chancelarias de seus aliados. Além disso, as pesquisas dão resiliente vantagem para Trump. Lula precisa considerar esse cenário.

Fortuna e virtude

O The New York Times, em editorial, traduziu as preocupações do establishment norte-americano: “Para servir este país, o presidente Biden deveria deixar a corrida”. Aos 81 anos, porém, ele não jogou a toalha e resistiu às pressões para abandonar a reeleição. Repete o roteiro dos que não querem se retirar antes de o sol se pôr: “Sei que não sou mais um jovem. Não caminho com tanta facilidade, não falo com tanta fluidez, não debato tão bem quanto antes, mas sei o que sei: como dizer a verdade”, disse no dia seguinte, na Carolina do Norte. “Dou a vocês minha palavra. Não voltaria a me candidatar se não acreditasse, com todo o meu coração e minha alma, que posso fazer esse trabalho”, completou.

Trump, com 78 anos, é apenas três anos mais jovem, mas aparenta muito vigor físico e rapidez de raciocínio, ainda que minta muito, tenha ideias estapafúrdias e agenda reacionária.

“Aquele que não sabe adaptar-se às realidades do mundo sucumbe infalivelmente aos perigos que não soube evitar. Aquele que não prevê a consequência dos seus atos não pode conservar os favores do século”, diz o Grão Vizir para sua filha, a princesa Sherazade, em “O pescador e o gênio”, do clássico da literatura árabe As mil e uma noites. A obra anônima reúne contos populares do Oriente Médio e do Sul da Ásia, entre os quais as histórias de Aladim e a lâmpada mágica e de Ali Baba e os 40 ladrões.

Uma vez por mês, num domingo à noite, o ex-prefeito Gilberto Kassab, presidente do PSD, reúne um grupo de políticos de diversas tendências para jantar em sua casa, entre os quais velhas raposas do Congresso. Nessas reuniões, discute-se conjuntura e se fazem diagnósticos, que dias depois começam a circular em conversas com outros políticos e jornalistas.

No último encontro, chegou-se a quatro conclusões: o governo Lula lida com um Congresso rico e poderoso, que inverteu a relação de dependência com o Executivo; seu ministério é um arquipélago político, no qual cada ministro cuida do seu quintal; a narrativa do governo está descolada das redes sociais, que hoje formam a opinião política da sociedade; e o cenário internacional carrega incertezas econômicas e políticas com as quais Lula não está sabendo lidar.

Como aquele príncipe que já não pode contar com muita fortuna diante da mudança de conjuntura, Lula dependerá muito mais das próprias virtudes para manter-se no poder. A propósito, O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, clássico dos clássicos da política e publicado em 1532, está entre os livros mais vendidos da semana. Trata, fundamentalmente, de como chegar, exercer e manter o poder. Vale a pena a edição comentada por Napoleão Bonaparte e Cristina da Suécia.

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A VOZ DO POVO

Merval Pereira, O Globo

Em seu primeiro mandato, Lula teve o bom senso de dar continuidade à política de equilíbrio fiscal iniciada no governo FH e teve sucesso

Um dos maiores legados do Plano Real, trinta anos depois, foi fazer com que a sociedade compreendesse a importância do controle da inflação. O plano só deu certo porque a população já não aguentava mais viver sob a hiperinflação, e aceitou todas as mudanças, inclusive aprendeu a lógica da URV - Unidade Real de Valor -, ponto crucial para a implementação do plano.

O país viveu muitos anos sem entender que a desvalorização da moeda prejudicava o dia a dia da população, e por isso os governadores usavam e abusavam de seu poder para ganhar eleições. Ficou famoso o comentário atribuído ao então governador de São Paulo Orestes Quércia, ao eleger Luiz Antonio Fleury Filho seu sucessor no governo de São Paulo em 1990: “Quebrei o banco, mas elegi meu sucessor”.

Referia-se ao Banespa, um dos mais potentes bancos públicos do país, que Quércia utilizou para financiar obras na campanha para governador. Com o Plano Real, todos os bancos estaduais foram privatizados, mais uma das ações para consolidar o combate da inflação, pois, praticamente sem exceção, os bancos estaduais eram usados para ações políticas, especialmente em vésperas de eleição.

Esse detalhe de um vasto plano econômico demonstra que a sociedade em geral não ligava para os efeitos desses gastos públicos nas campanhas eleitorais, pois não entendiam que aqueles “investimentos” a longo prazo teriam como contrapartida o aumento da inflação, voltando-se contra ela.

Hoje, o hábito de descontrole de gastos continua sendo uma característica dos parlamentares brasileiros e dos governos populistas, mas já provoca a reação da opinião pública. Há muitos controles dos órgãos públicos durante as campanhas eleitorais e, mesmo quando os abusos do dinheiro público garantem a eleição de um candidato, os efeitos deletérios desse gasto acabam corroendo a credibilidade dos governantes.

A falta de controle dos gastos públicos é a origem do desgaste do governo Lula neste momento. Já existe a sensação de que a retórica do presidente encaminha uma ação populista que acabará levando à alta da inflação de médio a longo prazo. Ao assumir o governo em 2003, em seu primeiro mandato, Lula teve o bom senso de dar continuidade à política de equilíbrio fiscal iniciada no governo Fernando Henrique, e teve sucesso.

Mesmo queixando-se permanentemente de uma suposta “herança maldita”, manobra para justificar possível fracasso, o primeiro governo petista, depois de três derrotas seguidas nas eleições presidenciais, teve êxito e reelegeu Lula, que fez sua sucessora Dilma Rousseff. Bastou, no entanto, que tentasse uma política econômica heterodoxa, com a malfadada “nova matriz econômica” de Guido Mantega, para que todo esforço de equilíbrio fiscal fosse por água abaixo.

Até hoje sofremos as consequências de uma política expansionista que começou no segundo governo Lula para eleger sua sucessora, e temos de volta a mesma base populista que impede um ajuste necessário para estancar a crise que se avizinha. A diferença para agora é que no primeiro governo Lula tinha a seu lado Antonio Palocci como ministro da Fazenda, uma antiga liderança petista respeitada pelo establishment partidário, que também estava no governo, acatando até mesmo Henrique Meirelles, um banqueiro internacional eleito deputado federal pelo PSDB, na presidência do Banco Central, surpreendente escolha de Lula que indicava intenção de manter o equilíbrio fiscal.

Hoje, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é mais respeitado pelo mundo financeiro do que pelo núcleo duro petista, que rejeita muitas de suas decisões. Haddad tem em seu desfavor o fato de ser o petista mais indicado para substituto imediato de Lula na corrida presidencial caso o presidente não queira disputar a reeleição. Mas, ao afirmar que ele é o povo no poder, Lula dá-se o direito de ser infalível, pois a voz do povo é a voz de Deus.

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sábado, 29 de junho de 2024

FHC ADMINISTROU CRISES DO PLANO REAL

Carlos Alberto Sardenberg, O Globo

A população andava cansada da inflação e dos sucessivos planos que só tornavam ainda mais complicada uma situação difícil

De Fernando Henrique Cardoso:

— Não se pode desperdiçar uma crise.

FH deve ter chegado a essa conclusão depois das diversas crises que enfrentou na elaboração, na implantação e no desenvolvimento do Plano Real, que completa 30 anos na próxima segunda-feira.

A primeira crise foi o ambiente em torno de sua nomeação para ministro da Fazenda, em maio de 1993. Seria o quarto ministro de um presidente fraco, Itamar Franco, com o país tomado pela hiperinflação. Os preços subiram 27% no mês da posse de FH, que se tornava o maior e talvez o único ativo de Itamar. Como o próprio Itamar disse a seu novo ministro: sua nomeação foi muito bem-aceita. FH entendeu: tornara-se responsável de fato pela política econômica. Na circunstância, dono de uma crise grave e piorando.

O lado promissor: a população andava cansada da inflação e dos sucessivos planos que só tornavam ainda mais complicada uma situação difícil. Provavelmente, toparia sacrifícios para um programa crível com uma equipe respeitada. Ainda assim, o propósito de FH e de sua então reduzida equipe era modesto: dar uma arrumada na casa, especialmente nas contas públicas, deixando qualquer coisa mais ousada para um futuro governo. O próximo presidente seria eleito em outubro de 1994.

Uma segunda crise mudou tudo. Em setembro de 1993, Itamar, sem conversar nem sequer avisar FH, demitiu o presidente do Banco Central, Paulo Ximenes, por uma questão boba em torno dos cheques pré-datados. Era Itamar sendo Itamar, provavelmente instigado pela sua turma para mostrar quem mandava ali. Para a equipe de FH, tudo acabava ali. O ministro se demitiria, e todos iriam para casa. Deu o contrário. FH foi conversar com Itamar e saiu maior ainda: colocou Pedro Malan na presidência do BC, reforçando seu time, e assumiu controle total de tudo o que se referia à política econômica. 

Como teria sido a conversa? FH nunca entrou em detalhes, mas Edmar Bacha, seu principal assessor, tem uma boa ideia. Fernando Henrique deve ter dito: vou embora, a inflação vai estourar mais forte, e o Congresso votará seu impeachment. Era uma boa previsão. Itamar entendeu. A equipe de FH também — agora vai, dá para fazer algo maior, tal era o sentimento. O Plano Real nascia ali.

Na véspera da introdução das notas novinhas de real, há exatos 30 anos, ainda houve crises. Como conta Rubens Ricupero, então ministro da Fazenda, já que FH deixara o posto para se candidatar a presidente, Itamar queria um congelamento de preços, fiscalizado pelos consumidores, e o tabelamento dos juros. Era a última tentativa de mandar em alguma coisa. Tudo contrário à base teórica e prática do Real. Então não tem plano, não tem nada, disseram a ele. Itamar sobraria só e com uma inflação que atingira espantosos 50% ao mês. Recuou, claro.

Assim o real começou a circular, e FH elegeu-se presidente, derrotando Lula no primeiro turno. Outras crises o esperavam. A quebradeira de bancos estaduais e privados, que viviam de girar dinheiro na inflação, serviu para uma arrumação geral no sistema financeiro. No fim do primeiro mandato, 1998, a crise dos países emergentes, que começara nos Tigres Asiáticos, chegou ao Brasil. O país foi ao FMI buscar dólares, com a ajuda do então presidente Bill Clinton, que falou com outros chefes de Estado e conseguiu uma vaquinha de US$ 40 bi para reforçar o caixa do BC brasileiro.

O real passava por uma crise financeira e cambial, que não foi desperdiçada. Fez-se outro ajuste de contas públicas e, sobretudo, ele deixou de ser atrelado ao dólar. Introduziu-se o regime de metas de inflação. Chegou-se, assim, ao desenho final do tripé macroeconômico: superávit nas contas públicas; taxa de câmbio flutuante; e metas de inflação. E incluídas as privatizações.

O tripé está incorporado à cultura econômica, embora diversos governos posteriores tenham tentado quebrar alguma perna. Lula, que seguiu o modelo em seu primeiro mandato, agora investe contra as metas de inflação e não gosta nada de cortar gastos para fazer superávit.

Uma pena. Deu tanto trabalho.

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UM ALERTA PARA O RISCO DE ESTRANGULAMENTO FISCAL

Marcus Pestana, Congresso em Foco

A Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão vinculado ao Senado Federal, publicou o seu Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) No. 89, relativo a junho de 2024, onde faz a revisão dos cenários de médio e longo prazo (2026/2034).

A perspectiva de crescimento médio anual do Produto Interno Bruto foi ajustada de 2,0% para 2,2% ao ano em função, fundamentalmente, dos ganhos de produtividade derivados dos efeitos da Reforma Tributária.

Nos médio e longo prazos, a IFI acredita que haverá convergência da inflação para níveis muito próximos a atual meta inflacionária, ficando, em média, no patamar de 3,1% ao ano.

Revisamos ainda a projeção da taxa básica de juros (SELIC) para 10,5% ao final do período de 2024 e 9,5% em 2025. Esta alteração se deu em função da mudança de postura do Conselho de Política Monetária (COPOM) que interrompeu o movimento de queda da SELIC tendo em vista as incertezas em relação à evolução do quadro fiscal brasileiro e do cenário internacional.

Considerando estes parâmetros macroeconômicos, a IFI reviu o cenário fiscal.

Pelo lado das receitas, as medidas  aprovadas em 2023, surtiram efeito na arrecadação de 2024 (tributação de fundos fechados, offshores, subvenções econômicas, entre outras).  No entanto, muitos dos resultados não se sustentam no futuro. Além disso, as receitas que tiveram um aumento substantivo em relação a 2023 ainda se encontram abaixo dos níveis previstos no Orçamento Geral da União (OGU) de 2024, ameaçando o cumprimento da meta prevista de zerar o déficit primário este ano.

Quanto às despesas, a IFI identifica uma subestimação nos gastos previdenciários na ordem de 30 bilhões de reais e no Benefício de Prestação Continuada (BPC) de 8 bilhões.

Observando a dinâmica de receitas e despesas nos últimos doze meses como percentual do PIB, levando-se em conta apenas despesas e receitas recorrentes, verificamos a execução de uma receita de 17,6%, uma despesa de 19,2%, gerando um déficit primário recorrente de 1,6%. Muito distante do objetivo de equilibrar as contas públicas.

Considerando-se a projeção para o período anual de 2024, a IFI aponta um déficit primário esperado de 75 bilhões de reais (0,7% do PIB). Excluindo-se da apuração da meta os gastos com o Rio Grande do Sul (cerca de 18 bilhões de reais), ainda assim permanece um déficit estimado de 0,5% do PIB, fora do intervalo de tolerância da meta fiscal (-0,25% do PIB) e muito distante do que a IFI projeta como resultado fiscal anual necessário para estabilizar a relação dívida/PIB (1,5% do PIB).

A IFI indica a necessidade de um contingenciamento de 37 bilhões de reais para atender a LDO. Para alcançar a meta fiscal prevista no novo arcabouço seria necessário um contingenciamento adicional de 30 bilhões de reais.

Por fim, o principal alerta da IFI é que mantidas as condições hoje presentes no cenário fiscal teríamos, em 2027, um estrangulamento orçamentário absoluto com as despesas obrigatórias comprimindo a margem das despesas discricionárias não rígidas no patamar de 0,25% do PIB. A IFI projeta que o nível mínimo de execução de despesas discricionárias não rígidas para manter a máquina governamental funcionando é de 0,7% do PIB.

Como se vê, o quadro fiscal projetado pela IFI tem desdobramentos insustentáveis e coloca na ordem do dia a necessidade de uma reforma fiscal. 

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CHOREI AO ASSISTIR AO DEBATE

Thomas L Friedman, The New York Times / O Globo

Opinião: Chorei ao assistir ao debate; Biden tem de abandonar candidatura pelo bem dos EUA

Se encerrar agora, poderá deixar a Presidência como um dos melhores líderes da História americana e mostrar aos eleitores que o país vem antes de seus interesses

Assisti ao debate entre Biden e Trump sozinho em um quarto de hotel em Lisboa, Portugal, e ele me fez chorar. Não consigo me lembrar de um momento mais desolador na política da campanha presidencial americana em minha vida — justamente por causa do que ele revelou: Joe Biden, um bom homem e um bom presidente, não tem condições de concorrer à reeleição. E Donald Trump, um homem malicioso e um presidente mesquinho, não aprendeu nada e não esqueceu nada. Ele é a mesma fonte de mentiras que sempre foi, obcecado por seus ressentimentos — nem perto do que será necessário para que os Estados Unidos liderem no século XXI.

A família Biden e sua equipe política devem se reunir rapidamente e ter a mais difícil das conversas com o presidente, uma conversa de amor, clareza e determinação. Para dar aos Estados Unidos a maior chance possível de deter a ameaça de Trump em novembro, o presidente deve se manifestar e declarar que não concorrerá à reeleição e que libera todos os seus delegados para a Convenção Nacional Democrata.

O Partido Republicano, se seus líderes tivessem um pingo de integridade, exigiria o mesmo de Trump, mas não o farão, porque assim não são. Isso torna ainda mais importante que os democratas ponham os interesses do país em primeiro lugar e anunciem que será iniciado um processo público para que diferentes candidatos democratas disputem a indicação — conselhos municipais, debates, reuniões com doadores etc. Sim, poderia ser caótico e confuso quando a convenção democrata começasse em 19 de agosto em Chicago, mas acho que a ameaça de Trump seria suficientemente grave para que os delegados pudessem rapidamente se unir e nomear um candidato de consenso.

Se a vice-presidente Kamala Harris quiser concorrer, ela deve fazê-lo. Mas os eleitores merecem um processo aberto em busca de um candidato presidencial democrata que possa unir não apenas o partido, mas o país, oferecendo algo que nenhum dos homens no palco de Atlanta fez na noite de quinta-feira: uma descrição convincente de onde o mundo está agora e uma visão convincente do que os Estados Unidos podem e devem fazer para continuar a liderá-lo — moral, econômica e diplomaticamente.

Porque não estamos em um momento comum da história. Estamos no início das maiores rupturas tecnológicas e da maior ruptura climática da História da Humanidade. Estamos no início de uma revolução de inteligência artificial que vai mudar TUDO PARA TODOS — como trabalhamos, como aprendemos, como ensinamos, como negociamos, como inventamos, como colaboramos, como lutamos em guerras, como cometemos crimes e como combatemos crimes. Talvez tenha passado despercebido, mas não ouvi a expressão "inteligência artificial" ser mencionada por nenhum dos participantes no debate.

Se há um momento em que o mundo precisa de um EUA em sua melhor forma, liderado pelos seus melhores, esse momento é agora — porque grandes perigos e oportunidades estão perante nós. Um Biden mais jovem poderia ter sido esse líder, mas o tempo finalmente o alcançou. E isso ficou dolorosa e inevitavelmente óbvio na quinta-feira.

Biden é meu amigo desde que viajamos juntos para o Afeganistão e o Paquistão após o 11 de Setembro, quando ele presidiu a Comissão de Relações Exteriores do Senado, por isso digo tudo isso com muita tristeza.

Mas, se ele encerrar sua Presidência agora, reconhecendo que, devido à idade, não está apto para um segundo mandato, seu primeiro e único governo será lembrado como uma das melhores presidências de nossa História. Só por nos ter salvado de um segundo mandato de Trump, ele merece a Medalha Presidencial da Liberdade, mas também promulgou uma legislação importante e crucial para enfrentar as revoluções climáticas e tecnológicas que estão chegando.

Eu estava pronto para dar a Biden o benefício da dúvida até agora, porque durante as vezes em que estive com ele individualmente, achei que estava à altura do trabalho. Ele claramente não está mais. Sua família e sua equipe deviam saber disso. Há dias, eles estão escondidos em Camp David se preparando para esse importante debate. Se esse foi o melhor desempenho que conseguiram obter dele, é hora de Joe manter a dignidade que merece e deixar o palco no final deste mandato.

Se ele fizer isso, os americanos comuns saudarão Biden por fazer o que Trump nunca faria — colocar o país acima de si mesmo.

Se ele insistir em concorrer e perder para Trump, Biden e sua família — e sua equipe e os membros do partido que o apoiaram — não poderão mostrar a cara.

Eles merecem algo melhor. Os americanos precisam de algo melhor. O mundo precisa de algo melhor.

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AMÉM, IRMÃOS !

Manfred Back e Luiz Gonzaga Belluzzo, CartaCapital

A autonomia operacional deve ser contida nos limites do sacramento das metas de Inflação

“A liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam.”
Baruch Espinosa

Na última reunião do Comitê de Política Monetária do Banco Central do Brasil (Copom), por unanimidade, foi ratificada a manutenção da Taxa Selic em 10,5% ao ano e a suspensão temporária de corte na taxa básica. No Templo dos Milagres do Financismo, localizado na Avenida Faria Lima, o pastor J.P. ­Morgan, no final do culto, bradou em êxtase: “Amém, irmãos! A credibilidade voltou! Nossas preces foram ouvidas, somos o povo escolhido para ganhar dinheiro, nossa verdade é a nossa fé!” Os fiéis gestores do dinheiro alheio fizeram o coro: “Oh a credibilidade voltou, oh oh…”

O Deus Mercado sempre está certo, amém irmãos! Quem melhor entende do vil metal? Nós ou o Banco Central? Nossa autoridade monetária voltou ao caminho da fé financista, viu a luz no caminho de Damasco… Faria Lima! Amém…

O dilúvio da desancoragem das expectativas inflacionárias foi salvo pelas mãos divinas do mercado. Contra a fé e o dogma metamorfoseados em Ciência, ninguém pode! Nem o Bacen! Amém duas vezes, irmãos!

No livro Poder e Progresso, Daron ­Acemoglu e Simon Johnson relembram Edmund Burke, contemporâneo de ­Bentham e Adam Smith. Burke referia-se às leis do comércio como “as leis da natureza e, consequentemente, as leis de Deus. Como alguém poderia se opor às leis divinas?”

Para apaziguar o espírito dos crentes, a autoridade monetária não deve fazer política monetária

Assim, vamos excomungar os infiéis do Federal Reserve, sempre dispostos a renegar nossas crenças. Eles dizem:

“Desde o fim de 2008 até outubro de 2014, a Reserva Federal expandiu grandemente a sua detenção de títulos de longo prazo através de compras no mercado aberto, com o objetivo de exercer pressão descendente sobre as taxas de juro de longo prazo e, assim, apoiar a atividade econômica e a criação de emprego, tornando as condições financeiras mais acomodativas” (site do Fed).

“O dinheiro que utilizamos para comprar obrigações quando estávamos a rea­lizar a flexibilização quantitativa não provinha de impostos nem de empréstimos governamentais. Em vez disso, tal como outros bancos centrais, podemos criar dinheiro digitalmente sob a forma de ‘reservas do Banco Central’.

“Usamos essas reservas para comprar títulos. Os títulos são essencialmente notas promissórias emitidas pelo governo e pelas empresas como forma de pedir dinheiro emprestado.

“Agora que estamos a reverter a flexibilização quantitativa, alguns desses títulos vencerão e estaremos vendendo outros aos investidores. Quando isso acontecer, o dinheiro que criamos para comprar os títulos desaparecerá e a quantidade total de dinheiro na economia diminuirá (site do Banco da Inglaterra)”.

Felizmente, dizem os sacerdotes da Seita Faria Lima, o Banco Central do Brasil está impedido de fazer esse tipo de operação amaldiçoada, praticada sem pejo por nossos irmãos anglo-saxões, tão admirados por aqui. No Brasil, a autoridade máxima monetária não pode determinar, intervir ou ancorar a estrutura a termo da taxa de juros. Nossa crença exige que a autonomia operacional seja contida nos limites da fé imposta pelo sacramento das Metas de Inflação.

Segundo os mandamentos da Seita Faria Lima, o Banco Central só pode definir a taxa Selic a cada 45 dias, em conformidade com o Boletim Focus, o Santo Graal das expectativas.  Só eles falam com o Deus Dinheiro! Os mortais das fábricas de parafusos não entendem de âncoras, só de parafusos! Amém duas vezes, irmãos!

Reza a legislação dos crentes brazucas:

“O objetivo fundamental do BC é assegurar a estabilidade de preços, além de, acessoriamente, zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego (site do Bacen)”.

Para apaziguar o espírito dos crentes, graças às prescrições do Velho Testamento do Senhor Dinheiro, a autoridade monetária não deve fazer política monetária e escapar do objetivo enganoso de suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego. Por quê? Porque negar os mandamentos do Deus Mercado é pecado sem remissão!

Nos cultos aos domingos, os mais concorridos, o cântico final é o mais esperado, quando o pastor J.P. Morgan puxa a reza final: fiscal, fiscal, fiscal! A oração mais esperada: Oh dinheiro nosso que estás no céu. Contra satã: a dívida pública explosiva e o Estado esbanjador!

O dilúvio da desancoragem das expectativas inflacionárias foi salvo pelas mãos divinas do mercado

As ditas operações compromissadas são um instrumento comum dos Bancos Centrais para controlar a taxa básica fixada no mercado interbancário. No nosso caso, diferentemente de nossos irmãos do Norte, a autoridade monetária usa título público federal com cláusula de recompra, para manter a taxa básica. Muito lucrativa aos bancos, e risco zero. Cabe uma observação importante, instituições financeiras existem para ganhar dinheiro. O que podem ou não fazer cabe à autoridade monetária definir. Aqui podem quase tudo, afinal, são elas que garantem a credibilidade do Banco Central.

As operações compromissadas são registradas como dívida pública federal. Estimam-se entre 20% e 30% do total, seria na ordem de quase 2 trilhões de reais. São operações de política monetária, nada a ver com o financiamento do déficit público. Mas serve ao mantra da Congregação da Faria Lima: fiscal, fiscal…

Para barrar as incursões de Galileu Galilei, o Cardeal Belarmino escreveu para outro clérigo: “… querer afirmar que realmente o Sol está no centro do mundo e gira apenas sobre si mesmo sem correr do Oriente ao Ocidente e que a Terra está no terceiro céu e gira com suma velocidade em volta do Sol, é coisa muito perigosa, não só de irritar todos os filósofos e teólogos escolásticos, mas também de prejudicar a Santa Fé ao tornar falsas as Sagradas Escrituras”.

Voltamos aos heréticos do Federal ­Reserve:

“Durante o processo de normalização da política que começou em dezembro de 2015, a Reserva Federal utilizou pela primeira vez acordos de recompra reversa overnight (ON RRPs) – um tipo de OMO – como uma ferramenta de política suplementar, conforme necessário, para ajudar a controlar a taxa de fundos federais e manter dentro da faixa-alvo definida pelo FOMC.

Em setembro de 2019, a Reserva Federal utilizou acordos de recompra (repo) a prazo e ­overnight para garantir que a oferta de reservas permanecesse ampla, mesmo durante períodos de aumentos acentuados nos passivos não relacionados com reservas, e para mitigar o risco de pressões do mercado monetário que poderiam afetar negativamente políticas de implementação. A Reserva Federal continuou a oferecer acordos de recompra ­overnight e, no contexto do estresse relacionado com a Covid, por volta de março de 2020, os acordos de recompra a prazo e overnight desempenharam papel importante para garantir que a oferta de reservas permanecesse ampla e apoiar o bom funcionamento dos mercados de financiamento de curto prazo em dólares dos EUA.

Na Declaração sobre acordos de recompra divulgada em 28 de julho de 2021, o Federal Reserve anunciou o estabelecimento de um mecanismo de recompra permanente (SRF) nacional. Ao abrigo do SRF, a Reserva Federal realiza diariamente operações de recompra overnight contra títulos elegíveis. “O FUR serve de apoio nos mercados monetários para apoiar a implementação eficaz da política monetária e o bom funcionamento do mercado (site do Fed)”.

Nosso irmão do Norte faz o mesmo tipo de operação, e não é contabilizado como dívida pública! Indagam os hereges: “Cadê a nossa autonomia operacional? Por que não implementar os depósitos voluntários e acabar de vez com as compromissadas, como a grande maioria dos Bancos Centrais no mundo?”

A Seita Faria Lima não deixa. Amém irmãos!

Prosseguem os malditos hereges:

“A taxa de juros sobre os saldos de reservas (taxa IORB) é determinada pelo Conselho e é uma ferramenta importante para a condução da política monetária do ­Federal ­Reserve. Para a configuração ­atual da taxa IORB, consulte a nota de implementação mais recente emitida pelo FOMC. Essa nota fornece as configurações operacionais para as ferramentas de política que apoiam a meta do FOMC para a taxa de fundos federais.

“Os depósitos a prazo facilitam a implementação da política monetária, proporcionando uma ferramenta adicional através da qual a Reserva Federal pode gerir a quantidade agregada de saldos de reservas detidos pelas instituições depositárias. Os fundos colocados em depósitos a prazo são retirados das contas de reserva das instituições participantes durante a vigência do depósito a prazo e, assim, drenam os saldos de reserva do sistema (site do Fed).”

Alô, Cardeal Belarmino, é hora de convocar a Inquisição! 

Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03 de julho de 2024.

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