quinta-feira, 20 de junho de 2024

JUNTOS CONTRA A BARBÁRIE

Maria Hermínia Tavares, Folha de S. Paulo

Sociedade freia PL Antiaborto por Estupro e mostra que pode barrar obscurantismo da direita extremada

Em boa hora, fracassou a tentativa do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), patrocinada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de acelerar a votação do projeto de lei 1904/24, que equipara o aborto a homicídio quando completadas 22 semanas de gestação.

Autor da desumana proposta, o parlamentar bolsonarista viu no pedido de urgência uma forma de constranger o presidente Lula —"testar o governo", confessou com todas as letras— valendo-se de um tema espinhoso como poucos. Lira, por sua vez, imaginou uma oportunidade de assegurar o apoio da bancada evangélica para eleger seu sucessor no ano que vem.

Nenhum dos dois está nem sequer remotamente preocupado com as consequências devastadoras para as mais frágeis entre as mulheres potencialmente atingidas se aprovado o absurdo: meninas muito pobres, vítimas de abuso sexual e chegadas à puberdade sem conhecer os direitos que a lei lhes garante e os instrumentos para exercê-los.

Enquanto o governo se enrolava, a reação veio da sociedade. Vigorosa, impôs a primeira derrota de vulto à extrema direita ali onde ela se sente mais à vontade para semear a intolerância religiosa e o desrespeito a visões diferentes das suas sobre vida privada e formas de ser das famílias.

A sociedade recorreu a todos os instrumentos disponíveis: manifestações de rua, artigos na imprensa, entrevistas e debates nas TVs, tudo rapidamente traduzido para o dialeto das redes sociais.

Passados meros três dias da aprovação do pedido de urgência, pesquisa do instituto Quaest evidenciou que as manifestações nas redes eram amplamente contrárias ao que já se tornara conhecido como "PL do estuprador". No seu melhor dia, colheu irrisórios 14% de postagens favoráveis. Já a sondagem aberta ao público no site da Câmara dos Deputados registrou 88% de opiniões contrárias à iniciativa.

A razão do êxito parece clara: a união de muitas vozes diferentes contra a iminente barbárie legislativa, formando um coro que incluía de conhecidas figuras públicas de direita a combativas militantes de esquerda. Associaram-se ao protesto pessoas e grupos com ideias diferentes sobre o direito ao aborto: desde quem o deseja assegurado de maneira ampla e irrestrita até quem se sente confortável com a limitada legislação em vigor.

Serão também diversas suas preferências por partidos e candidatos às próximas eleições municipais. Mas o episódio mostra como a convergência em torno de um mínimo de civilização pôde barrar o obscurantismo da direita extremada, contendo o dano às pessoas mais vulneráveis e à própria convivência democrática.

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