quinta-feira, 27 de junho de 2024

PELO FIM DO FLAGELO PROTECIONISTA

Anne Krueger, Valor Econômico

Se o sistema comercial internacional continuar em seu rumo atual, o mundo ficará mais pobre, mais dividido e muito mais vulnerável a ameaças existenciais iminentes

A Organização Mundial do Comércio (OMC) é uma das maiores histórias de sucesso da era pós-Segunda Guerra Mundial. Ao criar regras baseadas em princípios, como a não discriminação entre parceiros comerciais e o tratamento equitativo para bens nacionais e internacionais, a OMC permitiu o florescimento do comércio exterior, com enormes benefícios para o crescimento econômico geral e a redução da pobreza. Nesse sentido, a OMC é como o oxigênio: essencial, mas muitas vezes dado como certo.

Antes de 1800, o comércio internacional representava uma parcela muito pequena da atividade econômica mundial, tanto porque os custos de transporte e comunicação eram altos quanto porque a maioria dos países adotava políticas mercantilistas. Ao longo do século XIX, porém, esses custos foram caindo e as barreiras comerciais sendo reduzidas - primeiro no Reino Unido, e depois em toda a Europa - e teve início uma era de crescimento econômico extraordinário nas economias avançadas de hoje.

Esse período foi interrompido por duas guerras mundiais e pela Grande Depressão - eventos que, juntamente com as políticas protecionistas que alimentaram, fizeram o crescimento do comércio exterior e a produção mundial caírem de forma drástica. Depois da Segunda Guerra Mundial, contudo, as autoridades econômicas de ambos os lados do Atlântico elaboraram planos para uma nova arquitetura econômica internacional, moldada em grande medida pelas ideias de John Maynard Keynes. O predecessor da OMC, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) foi criado em 1947 para assegurar que o Estado de Direito prevalecesse no comércio internacional.

No meio século seguinte, as tarifas alfandegárias foram reduzidas, o comércio exterior floresceu e as economias avançadas alcançaram um crescimento sem precedentes - e sustentável - do Produto Interno Bruto (PIB). Nas décadas de 1980 e 1990, os países em desenvolvimento tentaram, cada vez mais, entrar na bonança do crescimento, abandonando suas próprias políticas protecionistas. Na virada para este século, o mundo passou a dar como certo o comércio aberto - e o sólido crescimento que ele sustentava.

Hoje, no entanto, o sistema de comércio internacional está sob ameaça. Os Estados Unidos, que encabeçaram o GATT, abandonaram seu papel de liderança - enfraquecendo profundamente a OMC, em especial sua capacidade de solucionar disputas comerciais -, em favor do protecionismo. Esse processo teve início durante o governo do presidente Donald Trump e continuou - e se intensificou - sob o presidente dos EUA, Joe Biden. Os EUA agora aplicam altas tarifas, em particular sobre os produtos chineses, e dão grandes subsídios para empresas locais como as de semicondutores e painéis solares.

Em resposta, outras economias - do Canadá à Turquia e à União Europeia - estão anunciando suas próprias tarifas e subsídios (muitas vezes voltados à indústria de semicondutores). Quando todos aplicam políticas protecionistas, todos perdem: as contramedidas anulam quaisquer vantagens para a indústria local, ao mesmo tempo que tornam mais caros os preços para os consumidores.

O problema é agravado pelo fato de que empresas não americanas agora hesitam em investir na expansão de sua capacidade de exportação, com medo de que seu acesso ao mercado dos EUA venha a ser restringido. Embora o comércio internacional e o PIB continuem a crescer, o ritmo está em desaceleração. Diante das promessas de Trump e de Biden de continuar por essa trilha protecionista após a eleição presidencial deste ano, as perspectivas para o sistema comercial internacional parecem sombrias.

Se o comércio exterior seguir rumo atual, o crescimento ficará aquém do potencial, o que vai encurtar o poder dos governos para agir sobre os desafios sociais e ambientais. O mundo ficaria mais pobre, mais dividido e muito mais vulnerável a ameaças existenciais iminentes

Em vez de continuar essa corrida retrógrada, as potências comerciais mundiais precisam resolver os desentendimentos que estão alimentando essa guinada para o protecionismo, a começar pelas práticas comerciais “injustas” da China. As principais reclamações manifestadas pelos EUA e outras economias voltadas ao mercado são as de que a China dá pesados subsídios a suas exportações e não respeita a propriedade intelectual (PI) de forma adequada.

A chave para resolver essas questões e restaurar a liderança comercial mundial dos EUA será garantir um campo de jogo igual para todos, inclusive em termos de PI, tanto para as empresas privadas em economias avançadas quanto para as empresas chinesas apoiadas pelo Estado. Para isso, os arranjos comerciais sob a OMC precisam ser atualizados, com os princípios keynesianos - incluindo o tratamento igualitário dos comerciantes estrangeiros nos tribunais nacionais - sendo adaptados a um contexto do século XXI.

Centros de estudo e acadêmicos deveriam começar a esclarecer os detalhes desses novos arranjos, o que inclui definir como se fará para que sejam cumpridos. Poderia haver necessidade, por exemplo, de uma nova agência internacional encarregada de garantir que as empresas estatais e apoiadas pelo Estado respeitem as regras atualizadas da OMC. Mecanismos para monitorar e fazer cumprir as reivindicações de PI, de acordo com padrões internacionalmente acordados, também seriam necessários.

Restaurar um sistema de comércio multilateral aberto não será fácil, mas os benefícios de fazê-lo são inestimáveis. Os países menores são os que têm mais a ganhar (em relação ao PIB) e podem até querer assumir a liderança na formulação dos planos. No entanto, a aceleração do crescimento econômico trazida pelo retorno ao livre comércio ajudaria a elevar os padrões de vida em todos os países. Isso também permitiria aos governos fortalecerem as redes de proteção social, resguardando assim os grupos que inevitavelmente seriam deixados para trás. E reduziria as barreiras políticas para financiar ações contra desafios mundiais, como a mudança climática, que só podem ser superados com cooperação internacional.

Se o sistema comercial internacional continuar em seu rumo atual, no entanto, o crescimento econômico ficará aquém do seu potencial, o que vai encurtar o alcance dos governos para agir sobre os desafios sociais e ambientais e enfraquecer a cooperação internacional em termos gerais. O mundo ficaria mais pobre, mais dividido e muito mais vulnerável a ameaças existenciais iminentes. (Tradução de Sabino Ahumada)

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