No artigo mais recente desta coluna (“Duas considerações iniciais sobre o resultado das eleições municipais” - https://padlet.com/sfialho/paulofabio_coluna),fiz comentários convergentes com duas considerações bastante frequentes na crônica política e no debate público, em outubro: os resultados das eleições não confirmaram o tipo de polarização que vinha sendo anunciada nas redes sociais e por discursos políticos mais radicalizados; a partir desses resultados municipais, a predição razoável que se pode arriscar é sobre as próximas eleições à Câmara dos Deputados e não sobre a disputa presidencial.
No mesmo artigo, fiz uma terceira consideração, mais controversa – a de que os resultados eleitorais pedem revisão de crenças correntes a respeito dos principais campos da geografia política do país e suas respectivas possibilidades de êxito em várias arenas de competição, até 2026. Sendo mais especifico: pedem reformular, ou abandonar, a noção de “centrão”, compreender em profundidade a crise da esquerda e centro-esquerda (que está longe de ser só crise eleitoral) e avaliar com realismo a força da direita radical e suas versões extremistas. Serão os temas deste e de mais dois artigos. Hoje é visita paciente ao centrismo, por onde se costuma passar batido, usando jargões ilusórios ou irônicos.
Em três eleições municipais (2016, 2020 e 2024) consolidaram espaço junto ao eleitorado uma direita e uma centro-direita tradicionalmente patrimonialistas no seu agir político; reformistas (mas não de modo homogêneo) nas pautas econômicas; inclinadas (também não homogeneamente) ao populismo, em pautas sociais; tendentes a surfar em ondas de líderes carismáticos na arena plebiscitária, a serem pragmáticas nas suas próprias estratégias eleitorais autônomas em eleições legislativas e bastante conservadoras na dita pauta de costumes. Os traços patrimonialistas de sua conduta geram críticas e desprezo em quem se preocupa com a qualidade da política democrática. Ao mesmo tempo essas forças políticas – caracteristicamente o PP e o Republicanos, em parte, o União Brasil e até partes do PL) – têm sido um colchão amortecedor de tentativas da extrema-direita de desestabilizar o sistema político.
Ao lado delas, mostra sua relevância eleitoral nos municípios um campo de centro cujas expressões são hoje o MDB e o PSD. Iguala-se à centro-direita em porte e em vários aspectos (patrimonialismo incluído, tradição política contra a qual, aliás, nenhum partido está ou pode estar vacinado), mas diferencia-se em outros: 1. É menos maleável a um fundamentalismo “neo-liberal" em economia, tendo alguma conexão com visões desenvolvimentistas e, no caso do MDB, até social democratas; 2. Não tem sintonia com as pautas conservadoras em costumes, assumindo, em geral, posição neutra e mais secular, quanto à relação entre religião e política; 3. Faz uma defesa mais normativa e não apenas pragmática do sistema político e da democracia representativa. Por esses três motivos esse centro não está na mera condição de um livre atirador e pode celebrar alianças menos fugazes com uma centro-esquerda que estiver disposta a isso. Os êxitos eleitorais do PSD e do MDB - caso os levem à cooperação mútua, mais do que à competição - podem permitir a formação de um eixo, com chance de aliança com o União Brasil, um partido mais programaticamente liberal que os demais da centro-direita. Se demonstrar força, esse potencial eixo centrista poderá atrair para sua órbita outros partidos, como PSDB e Cidadania, que parecem se encaminhar a uma solteirice provisória, após o insucesso de sua federação.
Tento descrever aqui um centro pragmático, uma centro-direita liberal e uma direita conservantista, todos organicamente assentados no sistema partidário e no jogo da representação política, que é sua fonte comum de reprodução. Mas esse assentamento está longe de sugerir que sejam um campo coeso. As siglas que reúnem esse centro e essas direitas moderadas deixaram de agir como livres atiradores atomizados, como faziam, à exceção do PFL/DEM e do MDB, no tempo em que, no Congresso, tinha sentido falar em alto e baixo clero. Cada sigla tornou-se mais partido do que era, no sentido de ter ciência da necessidade de sua conexão com alguma espécie de “campo político”.
No mercado político atual circulam bens distintos dos que circulavam nos tempos de plena vigência do clientelismo, mas é óbvia a afetação de todos esses partidos por cacoetes dessa gramática política tradicional. Uso o termo clientelismo no sentido isento de conotação moral que lhe deu Edson Nunes em Gramática política do Brasil, isto é, de resistência ao universalismo de procedimentos (a gramática tendencial em repúblicas democráticas), mas também de recurso defensivo da representação política, no Legislativo e nos partidos, contra sua anulação pelo insulamento burocrático e pelo corporativismo, gramáticas típicas de modernizações “por cima”, manejadas pelo Executivo, não importa a orientação política do governo de plantão. Falamos, ainda, de cargos públicos como moeda de troca mais ou menos generalizada – tal como a troca típica do clientelismo - mas há perfis legais específicos que seus ocupantes devem atender. Falamos cada vez mais de negociação em torno de públicos-alvo de políticas públicas e de emendas parlamentares. Nesse contexto sócio-político modernizado e institucional, segue relevante e sinuosa a incidência de equivalentes do clientelismo em todos os quadrantes ideológicos, seja na modalidade do fisiologismo mais tosco da pequena política de oportunidades, seja na de um patrimonialismo mais enraizado na sociedade e em estruturas administrativas do Estado.
Nesses partidos, que um hábito preguiçoso apelida de centrão, também são visíveis forças centrífugas que atuam para liquefazê-los. Esse fator inibidor do processo de institucionalização dos partidos está hoje menos ligado ao regionalismo, como cultura política tradicional e mais à dinâmica federativa do sistema eleitoral, de cujos pluralismo e representatividade forças centrífugas são implicação e contrapartida. À parte tais aspectos que contribuem para um nivelamento relativo dos partidos, insinuam-se entre seus respectivos órgãos e quadros dirigentes diferenças de conduta estratégica e de métodos de comando interno. Elas pedem pesquisa meticulosa, de sentido mais analítico do que normativo. Cada núcleo dirigente desses partidos de direita, de centro-direita e de centro lida, naturalmente, com circunstâncias peculiares, conjunturais ou não. Caso à parte é o do PL, legenda de aluguel da direita radical e da extrema-direita, tornado ambiente de incertezas que serão comentadas no último artigo desta série, dedicado a esse conjunto específico de forças. No de hoje ocupo-me de partidos que estão fora da polarização plebiscitária característica da arena eleitoral da presidência da República. Embora ali atuem elementos bolsonaristas, não têm peso como seus correspondentes no PL.
No PP não é de pouca relevância, para os movimentos de Ciro Nogueira e outros dirigentes, a contingência de ser o partido do poderoso presidente da Câmara, o que o torna uma legenda de consistência mais gasosa e vulnerável a recortes transversais. Já os dirigentes do Republicanos não podem deixar de considerar, além do forte viés religioso infiltrado em sua bancada parlamentar, a presença, entre seus quadros, do governador de São Paulo, um presidenciável em potencial que começa a demarcar terreno especifico próprio entre o empuxo bolsonarista e o legado tucano. No União Brasil, além de haver também aspirações presidenciais pontuais, a dependência de trajetória é a complexa gestão de dois legados distintos ali fundidos, o do PSL e o do DEM. À tentativa de conciliá-los, que transcorreu sem muito êxito por quase dois anos, parece suceder agora novo tipo de afirmação. Se não for bloqueado pelo personalismo com a ascensão de Davi Alcolumbre à presidência do Senado, o presidente do partido deve conduzir, com aparente apoio de núcleos estaduais fortes, um movimento que guarda semelhança com a atuação diferenciada dos núcleos dirigentes centristas do PSD e do MDB.
Nesses dois hoje principais partidos de centro, suas direções, ao contrário do que se dá, por exemplo, no PSDB e no Cidadania, têm tido condição de fixar, contra forças centrífugas, linhas de conduta nacionais. O processo é mais lento no MDB, pela sua proverbial fragmentação regional, a qual, contudo, vem sendo mitigada desde a campanha de Simone Tebet, bancada até o fim pelo empoderamento institucional que o fundo partidário proporcionou à direção partidária, presidida pelo deputado Baleia Rossi. Já no PSD, o processo de institucionalização, montado sobre o mesmo fundamento empoderador, já ganhou mais asas. Gilberto Kassab, além de mover-se com autonomia no jogo político miúdo do Legislativo e de arranjos governamentais antípodas, em Brasília e São Paulo, incursiona com crescente fluência e desenvoltura, quase como um Tancredo contemporâneo, sobre o chão em que pisam atores de grande política, dentre os quais por vezes desponta, como presidente do Senado, seu correligionário Rodrigo Pacheco. Kassab e Baleia são exemplares de uma linhagem nova de dirigentes partidários, filha de reformas incrementais do sistema eleitoral e do financiamento público de campanhas. A condição nova desses atores é a detenção de recursos de poder que os tornam capazes de influir, simultaneamente e com êxito, sobre bancadas do partido e sobre seus ministros no governo.
Nada disso quer dizer que elos sistêmicos mais sólidos impliquem em que exista, entre esse novo/velho centro e as direitas moderadas um vínculo orgânico que os leve necessariamente a uma aliança na próxima eleição presidencial. Difícil que formem uma frente única e lancem uma candidatura sua. Mais possível é que esses campos se repartam, nessa disputa, por pressão do factóide da polarização esquerda/direita, que busca anular um centro moderador para ocupar seu lugar e manter a competição presidencial insulada em relação a pressões centristas advindas dos resultados das eleições municipais.
Deflagra-se, no momento, com a injeção de oxigênio oferecida a Lyra para consagrar seu escolhido à sucessão na Câmara, o primeiro ato de uma operação similar à que se deu, entre 2020 e 2022, para refratar a tendência ao centro, indicada como caminho pelo resultado de eleições municipais então realizadas. Ali os polos da esquerda e da direita retroalimentaram-se atrás das cortinas, durante o entreato, quando as várias facções fabricaram, na contramão das urnas de 2020, o cardápio insosso e fumegante de 2022. A recuperação da elegibilidade de Lula deu à esquerda o atalho plebiscitário para saltar por cima dos seus próprios escombros eleitorais e à extrema-direita a senha para converter sua ação roedora de toupeira das instituições em conspiração aberta por um autogolpe.
Não estará alucinado quem notar, na súbita convergência do PL e do PT em torno do nome de Hugo Mota para a sucessão de Artur Lira, a dissipação antecipada de um potencial desvio de foco da sucessão congressual tendo como eixos o PSD, o MDB e o UB. O movimento convergente e rápido dos lados opostos que o centro e a direita moderada superaram nas eleições de 2024 bloqueia na raiz a hipótese de uma articulação centrista mundana vir a acumular força no Legislativo para pisar, mais adiante, no solo sagrado da sucessão presidencial. Conjurado o perigo, abre-se caminho cordial à recuperação da elegibilidade de Bolsonaro. Embora falte combinar com a Justiça e o conjunto da direita radical, esse cenário é virtualmente mais provável, após a vitória de Trump, pela pressão por anistia que ela pode acarretar. Isso pode permitir à oposição bolsonarista saltar por cima dos escombros a que a orfandade lhe condenaria e provocar, no lado oposto, a ressureição, em 2026, do script polarizado da campanha de 2022, que as eleições de 2024 rejeitaram. O risco dessa vez é maior para a esquerda, é o que mostram as atuais tendências eleitorais. Mas quem duvida de que o PT prefira, como em 2018, o comando da futura oposição em vez de uma dieta de protagonismo, apoiando uma candidatura de outro campo?
Também não estará delirando quem vir o centro e as direitas moderadas que as urnas vitaminaram assistirem passivamente à preparação de um cardápio dietético para o seu eleitor. Participação nas mesas da Câmara e Senado, execução expedita de emendas, paz em redutos eleitorais e sobra de mais recursos de fundos partidários para campanhas ao Legislativo são argumentos fortes de dissuasão de incursões amadoras à arena plebiscitária. O próprio Kassab adiantou a hipótese de que 2026 talvez ainda não seja a hora. Se quem teria mais força para ter pressa não a tem, quem a terá? A fleugma pragmática desse experiente centro político pode passar mais quatro anos lendo fábulas sobre a sua condição de centrão, sobre a iminência de uma tragédia fascista e sobre a missão salvadora de Lula.
Mas essa análise que se quer realista não pode terminar de descrever seu arco simplesmente aportando no primeiro cais. A política perderia o sentido se não permitisse cogitar cursos de ação alternativos. O governo Lula erra quando, ao atuar na pequena política, não discerne com clareza os dois tipos de “centro”. Pois deixa de explorar uma hipótese possível de fazê-lo acessar melhor a realidade nacional.
Um eventual eixo MDB / PSD, reforçado pelo União Brasil e outros eventuais partidos, poderia ter estímulo do Executivo para contrabalançar a influência das direitas radical e conservantista no Congresso, ancoradas no poder pessoal e no jogo de morde-sopra do atual presidente da Câmara. Mais de uma vez já se argumentou, em vão, que o bloco parlamentar ali formado, por aqueles dois partidos de centro, no início deste ano legislativo, tem peso numérico equivalente ao do condomínio suprapartidário controlado por Lyra, que só é invencível quando vitaminado por bancadas de centro-esquerda, que se dirigem a esse porto por inspiração do governo ou, ao menos, pelo seu nada-a-opor.
Surfar na desqualificação do conjunto como “centrão” pode ser taticamente interessante para desarmar bombas legislativas de curto pavio e também para, usando recursos de poder ainda disponíveis, forçar e sustentar a polarização de um amontoado de agentes contra a direita radical, na disputa plebiscitária presidencial. Mas traz sérios inconvenientes à qualidade da governança política (pelo rebaixamento da consistência programática da coalizão governante) e problemas ao desempenho da esquerda nos municípios. Governar com forças muito distantes no espectro político não evita, até agrava a solidão, em eleições municipais. A performance nesse plano costuma repercutir em eleições ao legislativo nacional, pelos antigos e por novos laços eleitorais entre prefeitos e parlamentares. É crescente problema para a esquerda e centro-esquerda, pois, no contexto, reforça-se, em paralelo, o protagonismo do Congresso.
Noves fora fatores conjunturais agravados por equívocos táticos, a proeminente derrota da esquerda nas eleições de outubro denuncia uma falta de horizonte político, por defasagem programática. Essa defasagem de cunho cognitivo, por sua vez, é implicação direta de uma obsolescência dos paradigmas interpretativos do Brasil e do mundo, aos quais esse campo se apega. Bem como de crenças normativas anacrônicas, que subsistem, ébrias, ao mergulho sem peias dessa esquerda empírica no terreno minado da pequena política. O pântano onde a atitude política dessa esquerda encontra-se atolada será o assunto do próximo artigo, ao qual sucederá outro, sobre a direita radical e a extrema-direita, o último de quatro comentários sobre a geografia política brasileira após as eleições municipais de 2024.
*Cientista político e professor da UFBa.
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