'Às velhas formas de supressão das liberdades vem se
somar agora a estratégia do iliberalismo, promovida pela ultra direita
internacional. Nela, a democracia é corroída por dentro'
No Ocidente, que é onde minha vista alcança, a questão da
liberdade nesses tempos remete sobretudo ao medo. Como o professor
Sul-coreano-alemão, Chul Han, descreve, “a liberdade não é possível onde reina
o medo. Medo e liberdade se excluem mutuamente”. O medo aprisiona a sociedade.
Contraposto ao espírito da esperança, sobretudo à esperança ativa, comprometida
com movimentos de busca do progresso, ele a deixa em permanente quarentena
(Byung-Chul Han, 2023).
Por certo, isso não signica esquecer o fato de que há
diversos países no hemisfério que enfrentam essa questão na dimensão mais
concreta, dura, primitiva - de histórica privação de liberdades públicas.
Países onde nunca houve instituições propriamente democráticas, a exemplo entre
outros de Zimbábue, Ruanda, Gabão ou Burundi. Outros há em que elas existiram
mas foram interrompidas por revoluções autodenominadas democratizantes, mas que
se corromperam em regimes autoritários como Cuba, Venezuela e Nicarágua.
Em todos esses países, na ausência quase
absoluta da liberdade, o medo do sistema, o temor aos tiranos, está incorporado
permanentemente ao kit de sobrevivência mental dos indivíduos na esfera
pública.
Mas não é desse medo que cogito aqui. Tampouco se trata do
“medo líquido” de que fala Bauman, cujas raizes são as incertezas relacionadas
aos múltiplos riscos da “globalização negativa”. Sejam os desastres climáticos
e ambientais, as crises econômicas, as pandemias, ou o terror ( Bauman, 2008).
Dirijo a lente para o sentimento que tem prosperado nesse
primeiro quartil do século XXI, difundido regular e sistematicamente - com
organização, disciplina e método- , pela extrema direita, em suas diferentes
versões nacionais. Um medo “arquitetado”.
Assim, às velhas formas de supressão das liberdades vem se
somar agora a estratégia do iliberalismo, promovida pela ultra direita
internacional. Nela, a democracia é corroída por dentro, conforme o modelo
exitoso da Hungria, de Viktor Orbán (Cas Mudde, 2023). O sucesso dessa
estratégia se baseia na promoção desenfreada do medo.
O medo que assume caráter coletivo é polarizador. Magnica as
divisões dentro da sociedade. Politiza e aprofunda diferenças que antes se viam
pouco valorizadas, eram toleráveis e conciliáveis. Ele produz e dissemina uma
sensação de instabilidade que termina por se materializar efetivamente,
estimulando descontentamento e protestos, conitos e até derrubadas de governos.
Esse medo redesenha o debate público, e leva os eleitores a abandonarem seus
partidos e lideranças tradicionais, galvanizando o apoio a outsiders, em geral
líderes autoritários que lhes acenam com segurança e proteção. O medo justica,
por m, as políticas repressivas, desde a aceitação da restrição de direitos até
mesmo o aplauso à hipótese de governos totalitários, como resposta ao que Hanna
Arendt já conceituara como “inimigos objetivos”, geradores de suspeita
generalizada e indiscriminada, sobre os quais se determinava o “uso da
mentira”, administrado primeiro pelo partido e depois pela máquina do Estado
(Arendt, 1951).
Nos tempos atuais, para promovê-lo e fazer adoecer a
democracia representativa os venenos são atualizados, bem como a posologia
adotada. Envolve doses elevadas de desinformação deliberada e disseminação
maciça de fake news na internet.
O pior é que não há antídotos cem porcento ecientes. Não há
como evitá-los de todo. A emergência das redes sociais tornou isso impossível.
Mas é necessário coibí-los. Limitá-los em alguma medida. Sobretudo pela
regulação das plataformas, como fez a União Europeia. As deepfakes criadas por
inteligência articial e os milhões de usuários e bots, que distribuem
informação apócrifa em redes criptografadas de ponta a ponta, agravaram o
problema. Elevando o desao a um patamar bem superior ao que foi no passado o de
controlar a propaganda política em jornais, rádios e TVs (Lavareda, 2024).
Ocorre que, em países como Brasil e Estados Unidos, há uma
enorme resistência à regulação de plataformas e redes. A extrema direita
paralisa essa agenda nos respectivos congressos. Anal, é difundindo o medo, e a
partir dele agredindo ora as minorias, ora o establishment, mesmo quando estão
claramente associados aos interesses das elites econômicas, é com essa fórmula
que os novos populistas se valem dos algoritmos das redes para conquistar apoio
eleitoral. A combinação dos interesses econômicos das plataformas e da força da
ultra direita nesses países torna muito difícil caminhar nessa direção.
A expectativa do mundo se volta nesses dias para tentar
prever o que acontecerá na principal potência, os Estados Unidos da América, a
partir de 20 de janeiro do ano próximo. Mas a rigor não é necessário qualquer
exercício adivinhatório. Basta reler os discursos e rever a propaganda da
campanha. Até o momento, temos um show de coerência. Os nomes anunciados para o
novo gabinete, por mais bizarros que pareçam a muitos, são pers totalmente
congruentes com a retórica do então candidato.
Portanto, é mais que justicado o temor de um retrocesso
signicativo na agenda de combate ao aquecimento global, numa quadra em que se
multiplicam os desastres climáticos; do anunciado distanciamento dos líderes
europeus, agravado pelo maior alinhamento com a Rússia; e o temor de uma
redução substancial do apoio à OTAN, e especialmente à Ucrânia, que será levada
à paz de joelhos. Na agenda interna, haverá deportações em massa de
indocumentados; perseguição a funcionários que no passado não foram complacentes
com iniciativas ilegais; demissões em massa de servidores públicos, a pretexto
de reduzir a burocracia; posturas negacionistas na condução da saúde pública; e
até mesmo a extinção do Departamento Federal de Educação. Tudo isso sob a
direção e batuta ideológica da Direita-Tech representada por Elon Musk e J.D.
Vance.
Por que Trump volta à Casa Branca? Porque que o medo já
estava sucientemente instalado na alma dos americanos ao tempo da votação.
A poucos dias da eleição, uma pesquisa do jornal New York
Times, em conjunto com o Siena College, mostrava a vitória de Trump no voto
nacional por um ponto percentual (Trump, 47%, Harris, 46%) . Como sabemos, o
resultado não foi muito diferente: Trump teve no voto total 50%, e Harris
48.4%.Uma diferença de + 1.6.
Aquela pesquisa mostrou que 76% dos americanos acreditavam
que a democracia no país estava sob ameaça. Uma opinião disseminada em todos os
níveis de renda e escolaridade. Com presença simétrica nos dois contingentes
eleitorais (com 77% entre os eleitores de Harris, e 76% entre os de Trump). Por
seu lado, em outro levantamento, o Instituto Gallup revelou que o medo dos
imigrantes havia assumido grandes proporções . Para um inédito percentual de
82% dos eleitores republicanos, a imigração aparecia como questão super
importante para ser levada em conta na eleição.
Os norte-americanos foram às urnas sob dois signos
combinados: o do medo generalizado de que sua democracia estivesse em perigo; e
um segundo, potencializado pelo primeiro, o da ansiedade especíca movida
sobretudo pelo descontentamento com o governo do dia, com 62% acreditando
equivocadamente que a economia estava piorando e 46% insatisfeitos com sua
situação econômica contra apenas 25% de satisfeitos.
Perdeu o partido no poder. O que tem ocorrido com frequência
no pós pandemia em diversos outros países que enfrentaram diculdades,
especialmente no capítulo de inação e juros elevados. Como prescreve a “teoria
da inteligência afetiva”, a ansiedade gerada na base eleitoral dos partidos
incumbentes cria uma abertura que é usada para encorajar a defecção de
eleitores na quantidade suciente para mudar a correlação de forças em favor dos
desaantes. ( Mackuen, Marcus, Neuman, and Keele, 2007)
Porém, cabe enfatizar que, se a economia jogou mais uma vez
um papel central no voto, o descontentamento com ela ocorreu dessa vez agravado
por um clima de medo, propelido por fake news poderosas, pervasivas, mesmo
quando desmentidas de forma contundente pelos fatos.
“Haitianos comendo gatos” e “votando em massa”; vídeos
produzidos na Rússia denunciando “operações irregulares do FBI”; “democratas
apoiando o aborto até depois do nascimento”; Estados Unidos ocupado por “hordas
de estrangeiros criminosos importados pelo governo das masmorras do terceiro
mundo”. Todas, notícias falsas. Somente as postagens de Elon Musk com alegações
falsas e vídeos adulterados acumularam bilhões de visualizações segundo o Grok,
concorrente do ChatGPT. Grok que é do mesmo Elon Musk, que doou 200 milhões de
dólares e fará parte do governo Trump.
Concluindo, o certo é que a inação aliou-se ao medo, e os
americanos deram lugar - com o novo governo Trump majoritário na Câmara e no
Senado, e respaldado pela maioria conservadora nos Suprema Corte - a uma era de
incerteza como poucas vimos antes. Nesse momento, não é exagero armar, voltando
à metáfora de Chul Han, que a liberdade do mundo entrou em quarentena.
*Cientista político e sociólogo, IPESPE/
UFPE. Presidente de Honra da ABRAPEL -Associação Brasileira de Pesquisadores
Eleitorais. Palestra proferida na ConferênciaInternacional “O Porto da
Liberdade”. Promovida pelo Instituto Português de História eCultura Local.
Porto. Portugal. 26/11/2024
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