Como outrora se dizia à luz de categorias marxistas,
a correlação de forças mudou. Após a Segunda Grande Guerra, o avanço da União
Soviética e o êxito da Revolução Chinesa (1948) estabeleceram um equilíbrio
pendular no mundo conhecido como Guerra Fria.
Os países capitalistas metropolitanos, em especial da Europa
Ocidental, adotaram políticas social-democratas que beneficiaram a classe
trabalhadora. O objetivo do Estado de bem-estar social era evitar que ela fosse
atraída pela agenda comunista. A elite entregou os anéis para não perder os
dedos.
Antonio Candido dizia que a maior conquista do socialismo
não tinha ocorrido nos países que o adotaram, e sim na Europa Ocidental que,
por temê-lo, concedeu direitos aos trabalhadores. Derrubado o Muro de Berlim
(1989), os direitos também vieram abaixo.
Como Hitler e Mussolini encarnavam o que se considerava
direita, se assumir como tal era tido como politicamente incorreto. No Brasil,
após a redemocratização (1985), na polarização partidária o PT representava a
esquerda e o PSDB, a direita, embora este partido traga em sua sigla a marca de
social-democracia.
Dissolvida a União Soviética (sem que se disparasse um único
tiro) e derrubado o Muro de Berlim, a direita decidiu “sair do armário”. Hoje,
a polarização ideológica não é entre esquerda e direita, é entre direita e
extrema-direita, como Kamala e Trump. Em nosso país, diante do avanço da
extrema-direita, boa parte da direita tenta se disfarçar de “centro”. É o caso
do PDT, do MDB e de outros, que não advogam uma sociedade pós-capitalista.
A eleição de Trump é a cereja do bolo que faltava à ascensão
da direita no mundo. Sem dúvida, ela haverá de anabolizar a extrema-direita no
Brasil. A diferença entre direita e extrema-direita é que a primeira respeita
as regras da democracia burguesa; a segunda, as ignora e adota medidas
autocráticas. O tema tem sido exaustivamente tratado por autores como Roger
Eatwell, Matthew Goodwin e Cas Mudde.
Como ficam os partidos progressistas como PT, PSOL, PCdoB,
UP e outros? Pelo andar da carruagem (eleição de Trump e resultados das
eleições municipais) dificilmente haverão de amealhar um número significativo
de votos nas eleições de 2026.
O próximo Congresso, a ser eleito em 2026, será tão ou mais
conservador que o atual. Quem garante isso? O orçamento secreto, agora
apelidado de emendas parlamentares. Nenhum cacique municipal ou estadual
correrá o risco de perder a boquinha na próxima legislatura federal. Quem vai
querer abrir mão dessa cornucópia da qual jorram, a cada ano, bilhões de reais
a serem embolsados por 81 senadores e 513 deputados federais?
Quais as alternativas para a esquerda e os partidos
progressistas? Um dos desafios é lidar política e profissionalmente com as
redes digitais. Não se pode depender de iniciativas pessoais ou grupais. Se um
partido quer emitir mensagens (análises de conjuntura; dados do governo
progressista; contrapontos às fake news da direita, etc.),
deverá contar com equipes de profissionais especializados em mídias digitais e
politicamente identificados com as propostas de esquerda. Não repetir o erro de
certas campanhas eleitorais de candidatos de esquerda, cujos marqueteiros são
de direita… Há que se ter equipes que se revezem de 8 em 8 horas de modo a
atuar 24h por dia, de domingo a domingo. E cujos conteúdos emitidos tenham
linguagem popular e sejam de forte impacto visual.
O que levou Lula três vezes à presidência da República? Não
foi a perícia dos marqueteiros nem as alianças partidárias, e sim o trabalho de
base, de educação política, que acumulou em torno dele vultoso capital
eleitoral. Trabalho desenvolvido em todo o Brasil a partir da década de 1970,
através das comunidades de base das Igrejas cristãs, dos movimentos populares,
do sindicalismo combativo, da militância remanescente da luta contra a
ditadura. Trabalho conduzido pela pedagogia de Paulo Freire.
Por que agora as classes populares dos EUA votaram em Trump?
Por que há “pobres de direita”? Por que só a direita consegue promover, hoje,
no Brasil, manifestações de rua com número significativo de pessoas?
Tomemos o exemplo de dona Maria. Diarista, sentia-se
excluída, oprimida, condenada à invisibilidade. Ansiava, como é natural, sair
do círculo do inferno. Sonhava em ser socialmente reconhecida e respeitada,
como todo ser humano. Não lhe bastava ter um nome, documentos de identidade e
uma atividade para sustentar, mal, a sobrevivência dela e dos filhos. Desejava
“algo mais” que lhe imprimisse identidade social, sejam bens materiais
(moradia, escola para os filhos, renda maior), sejam bens simbólicos (cultura,
qualificação profissional, aprimoramento de seus dons artísticos).
Maria se sentia humilhada pela árdua jornada diária.
Abandonada pelo marido, buscava conciliar seu trabalho de faxina com o cuidado
dos filhos. Além de trabalhar muito, passava horas do dia no transporte
coletivo e se sabia socialmente invisível. O filho adolescente queria ao menos
um tênis de marca para ser socialmente reconhecido. Os sonhos de consumo podiam
torná-lo vulnerável aos tentáculos da criminalidade.
Tudo mudou no dia em que Maria ingressou em uma comunidade
religiosa que a trata como “irmã”, se interessa por sua vida, ajuda-a a
transpor dificuldades. Para consolidar esse reconhecimento, ela abraçou a
ideologia da comunidade. O pastor ou o padre a convenceu de que essa sociedade
– capitalista – oferece oportunidades a todos, basta abandonar os vícios.
Assim, deixou de gastar seu minguado salário em apostas e cigarros. Agora mira
as famílias abastadas, em cujas casas faz faxina, como abençoadas por Deus,
graças à prosperidade alcançada. Ainda que as pessoas continuem considerando-a
uma “ninguém”, Maria aprendeu na Igreja que Deus, que a ama como filha e isso
alimenta sua autoestima.
Mesmo que o governo dê a Maria moradia própria graças ao
“Minha casa, minha vida” e uma renda adicional através do Bolsa Família; e
mesmo que seus filhos tenham escolas e empregos, ela não dará o salto
epistêmico da ideologia da direita para a esquerda.
Maria se inocula da naturalização do sistema capitalista por
todos os meios que a cercam: a cultura que respira, as famílias que a
contratam, a TV, o rádio, as redes digitais em seu celular. Como analisa o
sociólogo estadunidense Seymour Martin Lipset em sua obra “Political man”,
Maria admira pessoas ricas e poderosas, vota em políticos que prometem combater
a politicagem, a corrupção, e tratar com mão de ferro bandidos e traficantes de
drogas.
Maria só dará o salto epistêmico quando participar de uma
comunidade que a convença de que Deus não criou o mundo para que a humanidade
se dividisse em pobres e ricos, nem uma sociedade onde uns poucos esbanjam
muito e muitos clamam por um prato de comida. Ou quando se integrar a um
movimento popular que, além da organização para adquirir casa própria ou uma
área no campo onde possa produzir, ofereça a ela uma educação política que a
faça entender as causas das desigualdades sociais, da criminalidade, da dependência
de drogas.
Na cabeça de Maria, homens como Trump e Bolsonaro merecem
sua admiração porque são duros com a bandidagem e, por isso, os “frouxos”
tratam de acusá-los injustamente de toda sorte de mentiras. Maria não sonha em
ter a vida das madames para as quais trabalha. Sonha em andar pelas ruas sem
medo de lhe roubarem a bolsa ou o celular; em ver os filhos empregados; em ter
seu bairro com saneamento e ruas asfaltadas. Jamais imaginou que se na
sociedade houvesse menos ricos, haveria também menos pobres. Ela nunca teve
oportunidade de receber educação política. Por isso, vota confiante na direita,
como nos EUA eleitores votaram majoritariamente em Trump, convencidos de que
ele fará a roda da história girar ao contrário e o sonho americano se fará
realidade para todos.
Se a esquerda brasileira não tirar Paulo Freire das
prateleiras, reabrir equipes e escolas de educação popular, capacitar
militantes para atuar junto às classes populares, assumir a ética como
princípio inegociável, trocar o projeto de poder pelo projeto de Brasil, ela
haverá de sofrer, em 2026, sua pior derrota desde o fim da ditadura em 1985.
(*) Frei Betto é escritor, autor de
“Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.
Livraria virtual: freibetto.org
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