Luiz Gonzaga Belluzzo, Valor Econômico
Embornal de promessas inclui adoção de fortes medidas
protecionistas e ameaças de imposição de sanções aos países que ousarem escapar
do dólar
Na campanha eleitoral, Donald Trump sacou de seu embornal de
promessas a adoção de fortes medidas protecionistas. O embornal abrigou também
ameaças de imposição de sanções aos países que ousarem escapar do dólar. Vou
arriscar modestas considerações a respeito das peripécias da “moeda universal”
ao longo da história.
A história da economia mundial, desde meados dos anos 40,
não pode ser contada sem a compreensão das peripécias do dólar em seu papel de
moeda-reserva universal. No imediato pós-guerra, sob a égide de Bretton Woods,
o poder do dólar sustentou três processos simultâneos:
1) a expansão da grande empresa americana e
a presença das bases militares de Tio Sam mundo afora gerou o déficit na conta
de capitais dos Estados Unidos, o que garantiu o abastecimento da liquidez
requerida para o crescimento do comércio mundial;
2) no mesmo movimento, o Plano Marshall e a força do dólar
abundante incitaram a reconstrução dos sistemas industriais da Europa e do
Japão; e
3) na esteira da recuperação de suas economias, as empresas
europeias e japonesas, já na segunda metade dos anos 50, moveram-se para colher
as oportunidades oferecidas pelos projetos de industrialização na periferia.
No final dos anos 60 do século XX, os desequilíbrios
crescentes do balanço de pagamentos americano determinaram a desvinculação da
moeda americana em relação ao ouro em 1971 e, em 1973, promoveram a introdução
das taxas de câmbio flutuantes.
A continuada desvalorização do dólar nos anos 70 colocou em
apuros a supremacia da moeda americana. Essa ameaça foi enfrentada com a
elevação da policy rate deflagrada por Paul Volcker em 1979. A elevação dos
juros foi apresentada, então, como uma medida destinada a alcançar o objetivo
doméstico de controle da inflação, mas o efeito mais relevante para a economia
internacional foi a recuperação do papel do dólar como moeda-reserva. Os países
periféricos, como o Brasil, abarrotados de dívidas denominadas na moeda
americana, soçobraram no abismo da inflação desmesurada.
O gesto de Paul Volcker promoveu uma nova onda de
transformações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. A partir do
início dos anos 80, a valorização do dólar deflagrou o movimento de migração da
indústria manufatureira americana para as regiões nas quais prevalecia uma
relação câmbio/salários mais atraente. Assim, ampliaram-se os desequilíbrios
nos balanços de pagamentos entre os EUA e a China emergente.
História da economia não pode ser contada sem compreensão
das peripécias do dólar como moeda de reserva
Nas três décadas seguintes, ainda à sombra do fortalecimento
de sua moeda, os Estados Unidos estimularam as políticas de abertura comercial
e impuseram a liberalização financeira urbi et orbi. Assim, suas empresas
encontraram o caminho mais rápido e desimpedido para a migração produtiva,
enquanto seus bancos foram investidos plenamente na função de gestores da
finança e da moeda universais. Isto significa que os bancos americanos estavam
habilitados a:
1) administrar à escala global transformação da rede de
relações débito-crédito, fazendo avançar o processo de “securitização”;
2) comandar circulação de capitais entre as praças
financeiras e, portanto, afetar a formação das taxas de câmbio e taxas de juro
à escala global;
3) intensificar as mudanças na estrutura da propriedade, ou
seja, promover a concentração patrimonial e produtiva.
Um após outro, os países de moeda não conversível promoveram
a abertura financeira. Nos países centrais, a desregulamentação financeira
rompeu os diques de segurança erigidos depois da crise dos anos 30. As
restrições à finança buscavam impedir que os bancos comerciais - responsáveis
pela criação de moeda - se envolvessem no financiamento de posições
“especulativas” nos mercados de riqueza (ações, títulos de dívida e imóveis),
com consequências indesejáveis para a solidez dos sistemas bancários.
A subordinação da dinâmica das economias capitalistas aos
caprichos dos Mercados da Riqueza no ciclo dos anos 2000 de valorização de
ativos e de expansão do crédito foi impelida por um intenso e criativo
desenvolvimento das inovações financeiras. O uso de derivativos e a intensa
informatização dos mercados financeiros associaram-se aos métodos de “originar
e distribuir” para ampliar de forma desmesurada o volume de transações.
A conjugação entre taxas de juros baixas e práticas frouxas
de supervisão e regulação estimularam o acirramento da concorrência entre as
instituições financeiras na busca desaçaimada por maiores rendimentos. Para
tanto, era fundamental ampliar os volumes de crédito a serem “securitizados” e
elevar os coeficientes de alavancagem das instituições que carregavam esses
ativos.
Os cuidados típicos da era keynesiana, a da “repressão
financeira”, estavam voltados, sobretudo para a atenuação da instabilidade dos
mercados de negociação dos títulos representativos de direitos sobre a riqueza
e a renda. Isto significa que as políticas monetárias e de crédito se ocupavam
de atenuar os efeitos da valorização dos títulos de dívida e de propriedade
sobre as decisões de gasto corrente e de investimento da classe capitalista.
Tratava-se de evitar ciclos de valorização excessiva (e desvalorizações
catastróficas) dos estoques da riqueza já existente.
No capítulo XII da Teoria Geral do Emprego, Expectativas de
Longo Prazo, Keynes tratou do assunto. “Com a separação entre a propriedade e a
gestão que prevalece atualmente e com o desenvolvimento de mercados financeiros
organizados, surgiu um novo fator de grande importância que por vezes facilita
o investimento, mas que, outras vezes, contribui sobremaneira para agravar a
instabilidade do sistema. As reavaliações cotidianas efetuadas na bolsa de
valores, embora tenham como principal objetivo facilitar a transferência de
investimentos já realizados entre indivíduos, exercem, inevitavelmente, uma
influência decisiva sobre o montante do investimento corrente. Com efeito, não
faz sentido criar uma empresa nova a um custo maior quando se pode adquirir uma
empresa semelhante já existente por um preço menor”.
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