Não foi o espetáculo televisivo que atendeu com
diligência às demandas das profissões de fé – estas é que serviram aos
desígnios do espetáculo
Por graça ou interesse, as igrejas se valem dos meios de
comunicação para ganhar fiéis. Sabemos disso há coisa de cem anos. Foi nos
Estados Unidos, pelas ondas do rádio, que a prática se tornou um expediente
assíduo, ainda na primeira metade do século 20. Na década de 1960, os
televangelizadores, à imagem e semelhança de Billy Graham, cresceram e se
multiplicaram em escalas miraculosas. O cristianismo de raízes protestantes e
feições evangélicas se apossou de um filão inteiro das redes de TV, num empuxo
que se replicou mundo afora. Então, o linguajar plangente, a cenografia
ambientada em templos vastos, o figurino em traje passeio completo e a
coreografia expressionista fincaram seus púlpitos em plagas longínquas –
algumas verdadeiramente remotas, como as brasileiras. Por aqui, quando baixa o
horário nobre, pregadores oram e peroram em quase todos os canais abertos.
Todas as religiões, ou virtualmente todas, requisitam os préstimos e os
auxílios das tecnologias midiáticas em prol da fé. O divino é um campeão de
audiência. O demônio também – depende do ponto de vista do freguês.
Mas disso tudo já sabemos, e não é de hoje.
O que não sabemos e teimamos em não saber é que, no instante em que invocaram
as energias gentis do entretenimento para arrebatar assembleias maiores, as
igrejas selaram um pacto, se não com o satanás em pessoa, com entidades que
desconheciam e que podiam devorá-las por dentro. Tanto podiam que devoraram.
O resultado está aí, diante dos nossos olhos incrédulos. Não
foi o espetáculo televisivo que atendeu com diligência às demandas das
múltiplas profissões de fé – estas é que serviram, sem se dar conta, aos
desígnios do espetáculo. Quem tomou vulto ao longo das décadas não foi a
caridade, não foi o amor ao próximo, não foi o recolhimento pio, não foi a
fraternidade, não foi o retiro espiritual, não foi o voto de pobreza – foi,
isto sim, o transe do showbiz, foi o êxtase das receitas publicitárias, foi a indústria
do sagrado lucrativo, foi o mercado do pastoreio próspero e galante.
Não importa o tema da programação, importa somente a forma
da diversão catártica – a religiosidade está na forma, não no conteúdo. Você
pode achar que estamos em meio ao politeísmo pluralista de credos distintos que
convivem entre si num ambiente ecumênico. Você pode acreditar que os
megaeventos na cidade comprovam o que temos chamado de diversidade. Você pode
até argumentar que a Marcha para Jesus lança mensagens opostas às da Parada
Gay, e vice-versa. No entanto, por trás do aparente “multiculturalismo”, imperam
as leis ocultas do espetáculo, que a tudo igualam, padronizam e uniformizam.
Olhe e comprove. Na sua forma, a Parada Gay e a Marcha para Jesus são, mais do
que equivalentes, idênticas: ambas se espelham como gêmeas siamesas e
simétricas. As duas, supondo tirar proveito das turbinas do entretenimento,
ofertam a essas turbinas, em sacrifício, o combustível precioso das almas
fervorosas e dos corpos ferventes.
O entretenimento é o altar dos altares: não é uma ferramenta
pronta para entregar as encomendas que lhe chegam das seitas – ele é, antes, a
forma social da religião, de qualquer religião possível no nosso tempo. Toda
espécie de religação – seja como vínculo identitário, seja como laço
comunitário – só se realiza se passar pela mediação da malha comunicacional
orientada para o mercado e apenas para o mercado. É como empresa privada que
uma igreja se faz ativar pelos meios de comunicação.
As religiões não têm o poder de impor nenhuma liturgia às
telas eletrônicas – estas é que plasmam sua liturgia vaga sobre o ser etéreo
das religiões. Isso significa que, quando fala a língua do rádio, da TV ou da
internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da
televisão e da internet.
Fundamentalista, o entretenimento rege os seres humanos com
a força de um monoteísmo sem deus. Mesmo quando não trata de santos ou de
orixás, mesmo quando não fala sobre Jesus ou sobre Jeová, mesmo quando só se
ocupa de mercadorias banais, de atrizes sorridentes, de cantoras estridentes e
de jogadores de futebol, o entretenimento impera com seus cânones draconianos
(a sujeição à imagem, por exemplo), seus hábitos regulares (as togas dos
ministros do STF são envergadas como se fossem a capa do Batman), seus ritos
rígidos (os celulares de luzes acesas ondulando nos estádios) e seus códigos
aparentemente profanos, mas dogmáticos (vigaristas fazendo coraçãozinho com as
duas mãos juntas).
O cardápio dos sentimentos e o contorno dos afetos foram
consolidados pela indústria da diversão. Ela definiu o sentido do amor, da
justiça, da beleza, da comiseração e do ódio. O sujeito que vê em Donald Trump
um herói destemido projeta nele o que aprendeu nos filmes de Bruce Willis.
Apenas isso.
A religião do entretenimento fez do público uma plateia
fanática, para a qual a democracia é só mais uma atração. Não adianta pedir que
a plateia pense sobre o que faz. Na doutrina que ela abraçou com devoção, o
pensamento é o maior dos pecados mortais. Talvez seja o único.
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