No momento vivemos tempos explosivos, desafios à democracia,
a elegia à ignorância, ao sectarismo. Bombas explodem na capital federal,
central do Brasil, dias depois do lançamento do filme sobre a morte e a morte
de Rubens Paiva. Donald Trump é eleito. Dentre outros motivos, por falta de
história e por murros em pontas de facas equivocadas – a mais especial, o papel
coadjuvante do tema da paz pelos democratas e pelos analistas políticos. O
arauto da paz foi Trump. Uma velha pergunta ressurge: O que fazer?
Eis que surgem lições, sugestões e um sopro de esperança com
a peça “Não me entrego, não!”, de autoria de Flávio Marinho, a partir da
biografia de Othon Bastos, que aos 91 anos, mostra seu amor ao teatro, à
profissão de ator, sem firulas quanto à dureza do ofício de interpretar tantos
que pode se perder em si mesmo, uma dialética entre o ego e o outro, numa
conjuntura da supremacia do primeiro sobre o segundo.
A peça com cerca de 90 minutos de duração é
um tour de force de um ator que é um dos rostos mais marcantes no teatro, no
cinema e na televisão. Bastos, com uma dicção perfeita, com um tom de voz e uso
do corpo de forma quase sobrenaturais – segundo ele, esse mundo é que vaticinou
sua carreira – tem o auxílio da “memória”, interpretada por Juliana Medela, que
tem duplo papel: auxiliar com observações o autor nos seus 70 anos de profissão
e ajudar o público mais jovem com o “momento Google” para ilustrar personagens
que surgem na narrativa daquele que é considerado o maior ator vivo brasileiro.
A
narrativa de Bastos é muitas vezes atravessada pela História do Brasil, país
que tanto ama criticamente desde seu início titubeante como colega de Walter
Clark, um dos responsáveis pela Globo ser o que é com José Bonifácio Sobrinho,
o Boni; passando pela formação na escola de Paschoal Carlos Magno (a referência
de Agildo Ribeiro no personagem da “múmia paralítica” louco pela Bruna
Lombardi) e em Londres, para uma formação shakespearena mais ou menos bem
sucedida. Sua trajetória se firma no cinema com Alex Viany, cineasta comunista
que o colocou no filme-denúncia “Sol sobre lama” (1963) e, principalmente no
filme de faroeste à brasileira, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964),
vivendo o cangaceiro Corisco, autor da frase que intitula a peça. Nesse
momento, Othon é a síntese da formação do Brasil. Na crítica à sua escolha para
esse papel por conta do seu físico, ele vira aos olhos um Quasímodo
hercúleo, um baiano atarracado que vira um gigante de 2 metros e que pode lutar
de igual pra igual na faca com Antonio das Mortes.
Othon fala de seu casamento de mais de 60 anos, de sua
participação em outros filmes, como a sua soberba interpretação em “São
Bernardo”, baseado no livro de Graciliano Ramos; mas o que salta é seu amor
pela palavra. Ao eleger o ano de 1973 como o ano mais especial de sua carreira
ele nos traz um trecho de Um grito parado no ar, de Gianfrancesco
Guarnieri. É o momento que o ator rejuvenesce 50 anos e parece que fala com os
colegas de elenco numa atuação brechtiana. O ápice emocional é a lista
de nomes citados pela memória, como Fernando Peixoto, Guarnieri, Paulo José que
o dirigiu em Murro em ponta de faca, texto que antecede sua fantástica
reencenação de seu personagem arrivista em O Jardim das Cerejeiras, de
Tchecov.
Esse murro – no espectador por mostrar a força criativa do
teatro e desse extraordinário ator; no governo que tem um Ministério da Cultura
inerte e preso às amarras conceituais do que é o Brasil; no mercado, que não
patrocina monólogo que não seja a comédia fácil e, na educação, que mostra a
dificuldade do aprendizado da memória, da cultura e do patrimônio nacional,
esse último representado por Bastos, aquele que viveu Tancredo Neves no cinema
e divaga sobre o Brasil que poderia ter sido e do Brasil que ainda pode ser.
Essa peça é um ato de resistência do teatro e traz à tona a importância
pecebista no que houve de mais pujante e contundente na cultura brasileira.
Othon conduz os nomes dos mortos à cena para lembrar que estarão sempre
presentes e à mão para os mais jovens construírem uma retomada da cultura
nacional popular democrática, tudo com otimismo da leveza e pessimismo da
crítica.
Corram para ver Othon Bastos, esse Quasímodo hercúleo tem
muito a nos dizer e a nos ensinar(1)
*Doutorando em Ciência Política pela UNIRIO e
professor de História da Educação Básica em Saquarema e no Rio de Janeiro.
(1)Não me entrego, não. Teatro Vanucci. Shopping da
Gávea, terceiro andar. Sextas, sábados e domingos até 1 de dezembro.
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