A atuação do ex-presidente não decorre do desespero ante
a perspectiva de ver o poder se esvair com uma derrota eleitoral, mas é uma
estratégia construída desde sua posse
São 884 páginas, mas o coração
do relatório da Polícia Federal está em apenas sete. É
nelas que está a fundamentação daquilo que se busca desde o início
desta investigação: a centralidade do ex-presidente Jair Bolsonaro no
planejamento, coordenação e execução da tentativa de golpe.
É preciso chegar à página 841 para se deparar com o capítulo
“Jair Bolsonaro”, o nº 21 dos indiciados, que abre pela conclusão
“inequívoca” de que o ex-presidente “planejou, atuou e teve
o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios realizados
pela organização criminosa que objetivava a concretização de um golpe
de Estado e da abolição do Estado Democrático de Direito, fato que não se
consumou em razão de circunstâncias alheias à sua vontade”.
A atuação do ex-presidente não decorre do
desespero ante a perspectiva de ver o poder se esvair com uma derrota
eleitoral. É antes uma estratégia construída desde sua posse a partir da
construção de uma narrativa falsa sobre a vulnerabilidade das
urnas e fraude no sistema eletrônico de votação. A PF
conclui que o ex-presidente se antecipou para que, derrotado, não fosse acusado
de agir de maneira casuística e para legitimar os fatos que se sucederam depois
da tentativa malograda de reeleição.
Entre os fatos arrolados para atestar esta centralidade está
a reunião de 5 de julho de 2022, 13 dias antes da reunião do ex-presidente com
embaixadores. Em ambos os eventos, Bolsonaro consolida o discurso cultivado ao
longo de todo o governo pelas milícias digitais quando à disseminação
de notícias falsas sobre o processo eleitoral. Numa, para cobrar o engajamento
dos ministros na mesma tarefa e, na outra, para difundir sua tese junto a
representantes de governos estrangeiros e, assim, legitimar o golpe de fora
para dentro.
Findo 2º turno, quando o discurso convergiu com o resultado
desfavorável, Bolsonaro agiu para que o presidente do PL, Valdemar
Costa Neto, peticionasse uma representação eleitoral que acusava fraude no
processo. Ao longo do relatório são expostos diálogos obtidos por quebra
de sigilo telefônico em que os técnicos contratados pelo partido chegam à
conclusão de que não teriam como atestar a fraude. Nada disso demoveu Bolsonaro
e Costa Neto a seguir com a representação.
O ex-presidente não teve o mesmo sucesso com o Alto
Comando do Exército. O relatório descreve sua ciência e autorização à “Carta ao
Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro”
destinada a pressionar o general Marco Antonio Freire Gomes, comandante da
Força, a aderir ao golpe. A despeito da atuação de um núcleo de oficiais,
comandada pelo general Walter Braga Netto, ex-chefe da Casa Civil, na
desmoralização dos generais que constituíam o eixo da resistência, Tomás
Paiva, Richard Nunez e Valério Stumpf, o Alto Comando cerrou
fileiras ao lado de Freire Gomes. Os dois primeiros, hoje, são comandante e
chefe do Estado-Maior do Exército e o terceiro foi para a reserva.
O principal apoio que Bolsonaro tinha no colegiado era do
general que estava à frente do Comando de Operações Terrestres
(Coter), Theophilo Oliveira, mas este exigia a assinatura do ex-presidente
para se mobilizar pelo golpe. Por isso, o relatório dedica-se extensamente a
reconstituir a elaboração da minuta com a qual se impediria a posse do governo
eleito com a decretação de um Estado de Defesa para se apurar a “conformidade e
legitimidade do processo eleitoral”. A despeito da eloquência dos evangélicos
na defesa do bolsonarismo, coube a um padre católico, José Eduardo
Oliveira e Silva, da diocese de Osasco (SP), exercer um papel-chave no núcleo
que atuou ao lado do ex-presidente na redação da minuta golpista.
Pelo registro de entradas e saídas no Palácio do Alvorada e
pelo conteúdo dos diálogos obtidos por meio da quebra de sigilo telefônico dos
personagens envolvidos, o relatório atesta o quanto Bolsonaro foi municiado
cotidianamente pelo tenente-coronel Mauro Cid do planejamento e
execução das operações “Punhal Verde e Amarelo” e “Copa 2022”, destinadas a
neutralizar no limite da eliminação física de três principais alvos: o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice, Geraldo Alckmin, e o
ministro Alexandre de Moraes.
O ex-presidente também manteve interlocução com
articuladores das manifestações antidemocráticas em frente aos
quartéis, como o secretário-executivo da Secretaria-Geral da
Presidência, Mario Fernandes. O objetivo dessas manifestações, detalhadamente
descrito no relatório, era criar um clima de inconformidade e sublevação contra
o resultado eleitoral de maneira que, ao Exército, não restasse alternativa
senão interferir na ordem civil. Quem ficou sem alternativa foi Bolsonaro,
que acabou deixando o Brasil para não ser preso durante as manifestações do 8
de janeiro. Depois deste relatório, porém, este desfecho se tornou inevitável
quando as futuras denúncias forem acatadas e julgadas pelo Supremo Tribunal
Federal.
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