Sindicatos e partidos condenam a pressão do mercado para
o governo cortar despesas sociais e investimentos
“Mercado financeiro e mídia não podem ditar as regras do
País” proclama o Manifesto assinado por sindicatos, movimentos sociais e
partidos políticos.
Já no parágrafo de abertura, o texto dos inconformados vai
ao cerne da orquestração financeira e midiática: “Temos acompanhado, com
crescente preocupação, notícias e editoriais na mídia que têm o objetivo de
constranger o governo federal a cortar ‘estruturalmente’ recursos orçamentários
e outras fontes de financiamento de políticas públicas voltadas para a saúde, a
educação, os trabalhadores, aposentados e idosos, bem como os programas de
investimento na infraestrutura para o crescimento”.
No ambiente infestado de simplificações
manifestadas pelos senhores da finança e seus súditos capachildos, Roosevelt
seria massacrado se ousasse repetir o discurso proferido na convenção do
Partido Democrata, em 1936.
Às vésperas da primeira reeleição – ele ainda seria eleito
mais duas vezes –, Roosevelt pronunciou um discurso que hoje seria considerado
populista e demagógico, inclusive pela direita amparada nas perigosas
baboseiras de Trump e Bolsonaro. Ele dizia que a moderna civilização, depois de
demolir as velhas dinastias, erigiu novas. “Novos impérios foram construídos a
partir do controle das forças materiais. Mediante o novo uso das corporações,
dos bancos e da riqueza financeira, da nova maquinaria da indústria e da
agricultura, do trabalho e do capital – nada disso sonhado pelos fundadores da
pátria –, a estrutura da vida moderna foi totalmente convertida ao serviço da
nova realeza. Não havia lugar nos seios da nova nobreza para abrigar os
milhares de pequenos negócios e comerciantes que desejavam fazer um uso sadio
do sistema americano de livre-iniciativa e busca do lucro.” Roosevelt atacou os
“príncipes privilegiados” das novas dinastias econômicas. “Sedentas de poder,
elas se lançaram ao controle do governo. Criaram um novo despotismo, envolvido
nas roupagens da legalidade. Mercenários a seu serviço trataram de submeter o
povo, seu trabalho e sua propriedade.”
Acossado pelos faniquitos do mercado financeiro e pelos
arroubos dos “especialistas” que proclamam suas banalidades na mídia, o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva se manifestou: “Veja, eu não posso
adiantar porque a gente ainda não concluiu o pacote. Eu tô num processo de
discussão muito, muito séria com o governo porque eu conheço bem o discurso do
mercado, conheço a gana especulativa do mercado. E eu, às vezes, acho que o
mercado age com uma certa hipocrisia, com uma contribuição muito grande da imprensa
brasileira, para tentar criar confusão na cabeça da sociedade”, disse o
presidente.
Lula afirmou que os cortes não
podem mais ser feitos “em cima do ombro das pessoas mais necessitadas” e cobrou
colaboração do Congresso no tema.
Peço licença ao leitor da nossa CartaCapital para incluir
considerações exaradas no livro recém-publicado em coautoria com Nathan
Caixeta. Arriscamos perquirir as relações entre dinheiro, poder e
ideologia.
Desde a dissolução, nos anos oitenta do século passado, do
assim chamado “Consenso Keynesiano”, as relações entre o Político e o Econômico
foram ordenadas de modo a remover quaisquer obstáculos à expansão do poder dos
mercados financeiros. Esse movimento foi acompanhado pela “apropriação” das
decisões e das informações pelo “cérebro” da finança. Mais poderosos na
formação das decisões e, contrariamente ao que se esperava, menos “eficientes”
na definição dos critérios de avaliação do risco, os mercados financeiros
lograram capturar os controles da economia e do Estado, mediante o aumento do
seu poder social. Esse poder social decorre do peso crescente dos estoques de
direitos de propriedade e de títulos de dívida na riqueza total. Esses
direitos sobre a riqueza e a renda ganharam maior participação na riqueza total
ao longo dos sucessivos ciclos de criação de valor produzido na “esfera real”.
As políticas anticíclicas da era keynesiana cumpriram o que
prometiam ao sustar a recorrência de crises de “desvalorização de
ativos”. Mas, ao garantir o valor dos estoques de riqueza já existente, as
ações de estabilização ampliaram o papel dos critérios de avaliação dos
Mercados da Riqueza nas decisões de gasto de empresas, consumidores e governos.
A lógica financeira determinou, ademais, a subordinação da política fiscal à
política monetária. No âmbito da gestão monetária, os cuidados com os riscos de
valorização excessiva e desvalorizações catastróficas dos estoques da riqueza
já existente transformaram-se na ocupação primordial dos Bancos Centrais.
A conversa mole de transparência e austeridade encobriu o
movimento real das coisas: sob o véu da racionalidade econômica, esgueirava-se
a mão que iria pilhar o emprego e a aposentadoria dos desvalidos. Os gênios da
nova finança estavam dispostos a utilizar quaisquer métodos para desqualificar
as resistências aos seus anseios. Imobilizaram homens e mulheres nas teias do
pensamento uniformizado e repetitivo: “Não há alternativa”.
A nova finança e sua lógica notabilizaram-se por sua
capacidade de impor vetos às políticas macroeconômicas. A despeito do
desemprego e da desigualdade escandalosa, as ações compensatórias dos governos
sofrem fortes resistências das casamatas conservadoras. A globalização, ao
tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos grupos
privilegiados, desarticulou a velha base tributária das políticas keynesianas
nas quais prevaleciam os impostos diretos sobre a renda e a riqueza.
A ação do Estado, particularmente sua prerrogativa fiscal, é
contestada pelo intenso processo de homogeneização ideológica de celebração
do individualismo que se opõe a qualquer interferência no processo de
diferenciação da riqueza, da renda e do consumo efetuado através do mercado
capitalista. Os programas de redistribuição de renda, reparação de
desequilíbrios regionais e assistência a grupos marginalizados têm encontrado
forte resistência dentro das sociedades. Mais um ardil da razão: o novo
individualismo construiu sua base social na grande classe média que emergiu da
longa prosperidade e das políticas igualitárias que predominaram na era
keynesiana.
Publicado na edição n° 1337 de CartaCapital, em 20
de novembro de 2024.
Nenhum comentário:
Postar um comentário