segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

CADÁVERES DA ANISTIA

Demétrio Magnoli, O Globo

STF recusou o argumento de que crimes contra a Humanidade são imperdoáveis e imprescritíveis

Flávio Dino provocou o STF a renunciar à renúncia. Quase 15 anos atrás, o tribunal reafirmou a Lei de Anistia, recusando o argumento de que crimes contra a Humanidade são imperdoáveis e imprescritíveis. De lá para cá, os juízes supremos recusam-se a ouvir até mesmo ações sobre as pessoas que foram “desaparecidas” pela ditadura militar. No seu “basta”, Dino propõe um limite: a ocultação de cadáver é um crime continuado, não um evento do passado.

A decisão de 2010 do STF invocou a intocabilidade dos “pactos que conduziram o Brasil à democracia”. Os juízes de capa preta prenderam o Brasil à chantagem militar de 1979 — ao intercâmbio da abertura política pelo perdão aos gerentes do subterrâneo. No fundo, proclamaram que a Constituição de 1988 é refém de atos jurídicos oriundos de um regime ilegal e, portanto, que à nação brasileira ficam vedados os direitos à justiça e à memória exercidos pelo Chile e pela Argentina.

“Anistia é esquecimento, virada de página, perdão para os dois lados”, decretou Marco Aurélio de Mello. O ministro do STF pronunciava uma dessas aberrações jurídicas monumentais. Haveria, segundo ele e a maioria do tribunal, uma lei imune à revisão constitucional ou parlamentar, cercada pela fronteira do tabu.

Sob o tacão da anistia, surgiu nossa Comissão da Verdade, cuja finalidade era fabricar um simulacro de memória esculpido pelas conveniências do presente. Tribunais produzem verdade jurídica: uma sentença definitiva. Historiadores escrevem verdade histórica: uma narrativa temporária, sujeita a revisões. Nossa Comissão da Verdade oscilou no vácuo entre uma e outra, sem gerar as implicações práticas da primeira nem as reflexões da segunda.

O debate sobre a Lei de Anistia foi superado pela tirania do tempo. Os réus potenciais já morreram ou atravessam a quadra final de sua vida. Mas uma ferida segue aberta: os “desaparecidos”. O filme “Ainda estou aqui”, citado na decisão de Dino, alerta sobre ela. Os familiares dos que “sumiram” continuam privados de um direito humano básico. Eles não têm direito a uma lápide, a um lugar de luto e de memória.

Diferentemente da Argentina ou do Chile, a África do Sul não prendeu os responsáveis pelas violações dos direitos humanos durante a era do apartheid. Contudo, ao contrário do Brasil, sua Comissão da Verdade ganhou estatuto judicial. Tribunais conduziram investigações e esclareceram os eventos. A colaboração dos réus figurou como condição prévia para o perdão.

O sistema sul-africano produziu memória firme. O STF tem, a partir da provocação de Dino, a oportunidade de copiá-lo, pelo menos para o caso dos “desaparecidos”. Sem encarcerar ninguém ou revogar a Lei de Anistia, pode instaurar procedimentos judiciais de investigação, reconstruindo as histórias ocultas dos crimes estatais de eliminação das 210 pessoas catalogadas como “sumidas”.

Rubens Paiva está entre elas. A eventual descoberta de seu corpo vale bem mais — também, quero crer, para o diretor e os atores de “Ainda estou aqui” — que qualquer prêmio cinematográfico internacional.

A anistia corrompeu a memória das Forças Armadas, que continuam a nomear o golpe de Estado como revolução, ensinam uma história amputada nas escolas militares e, até há pouco, celebravam o 31 de março em ordens do dia subversivas. O problema é da sociedade brasileira, não apenas dos familiares dos “desaparecidos”. Um sintoma da doença encontra-se no inquérito da PF sobre a articulação do golpe bolsonarista. A cura passa pela verdade judicial, com sua carga de desonra para os que torturaram, assassinaram e esconderam os cadáveres de indivíduos sob tutela estatal.

Dez anos atrás, o ministro Teori Zavascki suspendeu liminarmente a ação penal contra cinco militares acusados pelo “desaparecimento” de Rubens Paiva. Após a morte de Zavascki, em 2017, a relatoria do caso passou a Alexandre de Moraes, que preferiu o caminho da perene inação. Os juízes do STF cantam, em prosa e verso, o valor dos direitos humanos. Logo saberemos o valor de seus discursos políticos em moeda judicial.

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