Judiciário lidou com questões sensíveis na política
brasileira, com destaque para o avanço das investigações sobre a tentativa de
golpe de Estado, com conclusão prevista para o início de 2025, e das regras de
transparência das emendas parlamentares
No centro das discussões mais importantes da política
brasileira, o Poder Judiciário teve, em mãos, questões essenciais para o
funcionamento da democracia do país. O Supremo Tribunal Federal (STF) se
debruçou em regras de transparência e rastreabilidade das emendas
parlamentares, além de avançar na investigação sobre tentativa de golpe de
Estado e debater a responsabilidade das plataformas digitais no combate às
notícias falsas. No Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o desafio foi o
enfrentamento do uso malicioso da inteligência artificial (IA) nas eleições
municipais de 2024.
Os desdobramentos das emendas seguiram até
as vésperas de Natal. O ministro
Flávio Dino, do STF, determinou, nesta semana, a suspensão do pagamento de R$
4,2 bilhões do montante. O magistrado mandou a Polícia Federal (PF) abrir
um inquérito para investigar o caso. Ele também ordenou que o governo só poderá
executar o montante relativo ao ano de 2025 com a conclusão de todas as medidas
corretivas ordenadas, como a indicação do autor e do beneficiário final dos
recursos no Portal da Transparência, e a separação entre o relator do Orçamento
e autor das emendas.
As emendas são indicações de gastos que deputados e
senadores fazem no Orçamento do governo para obras e projetos nos estados que
os elegeram. O pagamento estava suspenso desde agosto, por decisão do STF. A
decisão obrigou o Executivo e Legislativo a trabalharem juntos para aprovar uma
lei para dar mais transparência e rastreabilidade aos recursos.
Em dezembro, Dino autorizou, com ressalvas, a retomada do
montante. A situação não gerou uma crise institucional, mas esbarrou no
Judiciário, pois, na avaliação de especialistas, o texto aprovado possui
lacunas sobre as divisões políticas dos recursos e, ao tirar o controle de uma
parte considerável da execução do Orçamento, pode invadir a competência do
governo — responsável por fazer a política pública dos repasses.
Para o professor de estudos brasileiros da Universidade de
Oklahoma (EUA), Fabio de Sá e Silva, a atuação da Corte mostrou que, em meio a
tantas disfunções que acometem as instituições, ainda pode fazer diferença na
qualificação da democracia brasileira. "Isso ficou claro quando o ministro
Dino, dando sequência ao que já fizera Rosa Weber, pressionou o Congresso a
conferir transparência e rastreabilidade a emendas e, mais ainda, quando vieram
à tona os detalhes da tentativa
de golpe de Estado — os quais, dificilmente, saberíamos sem o trabalho
da PF."
O cientista político e advogado Nauê Bernardo de Azevedo vai
além e afirma que há protagonismo do Supremo em todos os momentos agudos da
República desde 1988. "Mas o STF não é o único órgão da Justiça
brasileira, apesar de ser o órgão de cúpula. Tribunais como o STJ (Superior
Tribunal de Justiça) e o TST (Tribunal Superior do Trabalho) também possuem
imensa relevância", ressalta.
Azevedo aponta a investigação do suposto golpe como o tema
mais importante do ano em termos de repercussão, mas destaca outros assuntos
com grande impacto na vida dos brasileiros. "A título de exemplo: a
limitação de vagas para mulheres na Polícia Militar; a escolha de regra mais
benéfica para aposentadoria; o porte de maconha; a lei que proíbe vacinação
compulsória ou mesmo sobre o Marco Civil da Internet (embora este não tenha
sido finalizado ainda)", elenca.
Na avaliação do cientista político Elias Tavares, o
protagonismo do Judiciário em 2024 reflete a capacidade do poder de agir como
pilar de estabilidade em um cenário político frequentemente marcado por tensões
e polarizações. "Para restaurar o equilíbrio, o Legislativo e o Executivo
devem fortalecer sua capacidade de liderança, assumindo maior responsabilidade
na criação de políticas públicas e demonstrando eficiência na resposta às
demandas da sociedade. O desafio está em reequilibrar os papéis institucionais
sem comprometer a autonomia do Judiciário", aponta.
Golpe em destaque
Para 2025, a Justiça se prepara para o inquérito da Polícia
Federal que indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 36 acusados por
tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de
Direito. A denúncia está nas mãos da Procuradoria-Geral da República (PGR).
Devido ao recesso de fim de ano no Supremo, que começou em 19 de dezembro e
termina em 1° de fevereiro, a expectativa é a de que o julgamento da eventual
denúncia ocorra somente no ano que vem.
Na investigação do golpe, agentes da PF recuperaram arquivos
deletados no computador do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de
Bolsonaro, com detalhes sobre o plano "Punhal Verde e Amarelo". A
trama golpista previa reverter o resultado das eleições de 2022, além do
planejamento de assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do
vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes.
Caberá ao chefe do Ministério Público Federal (MPF), Paulo
Gonet, decidir se Bolsonaro e os demais indiciados serão denunciados à Corte
Suprema pelas acusações. As defesas dos investigados também deverão se
manifestar nos autos do processo.
Neste ano, a PF também solicitou ao ministro Alexandre de
Moraes compartilhamento de informações da investigação da chamada Abin
Paralela, um esquema de espionagem ilegal montado na Agência Brasileira de
Inteligência. Para a corporação, há conexão entre as ações do esquema e a
tentativa de golpe de Estado no país.
Outro momento que marcou o Judiciário neste ano e que,
possivelmente, há ligação com o golpe, segundo a PF, é o atentado no
estacionamento da Câmara dos Deputados e do STF, em novembro. Francisco
Wanderley Luiz, de 59 anos, carregava uma mochila com explosivos e, após lançar
outros artefatos, se deitou no chão e acionou a bomba junto à nuca. O homem
morreu na explosão.
A Polícia Federal investiga a relação direta entre o fato e
os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 — que culminaram na depredação dos
prédios dos Três Poderes. Natural de Santa Catarina, Francisco tinha alugado
uma casa há 3 meses na região administrativa de Ceilândia, a 30 quilômetros do
local das explosões.
Para o cientista político Elias Tavares, a Justiça
demonstrou força em momentos críticos. "A tentativa de golpe foi um
divisor de águas para o Judiciário. Ele mostrou que a democracia brasileira não
se curva diante de ameaças, enviando uma mensagem clara de que atos
antidemocráticos não passarão impunes", diz. "O Judiciário mostrou
que está disposto a enfrentar as big techs, mas isso é só o começo. O
verdadeiro desafio será criar uma regulação que seja eficaz, mas que também
respeite direitos fundamentais", completa.
Fabio de Sá e Silva reforça a importância do avanço das
investigações. "Nada vai superar a conclusão dos inquéritos (das fake
news, atos antidemocráticos, milícias digitais, joias, cartão de vacinas e
golpe de estado) e o julgamento dos envolvidos, entre os quais devem aparecer
figurões como Bolsonaro e generais. Isso não 'recivilizará o Brasil', como
aspira o presidente do Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, mas se acertarem
mais que errarem na condução desses processos, o saldo final será favorável aos
magistrados e ao país."
Eleições
O ano na Justiça eleitoral, por sua vez, foi marcado pela
posse da ministra Cármen Lúcia como presidente do TSE. Ao assumir o lugar do
ministro Alexandre de Moraes, o desafio se concentrou em tocar projetos de
enfrentamento à desinformação nas eleições municipais deste ano, além de
julgamentos importantes como, por exemplo, os que envolvem o ex-chefe do
Executivo.
No pleito deste ano, a Justiça Eleitoral saiu do radar de
ataques de grupos extremistas que, no pleito anterior, tentaram descredibilizar
as urnas brasileiras. Outro temor do Judiciário também não se concretizou: o
uso da inteligência artificial (IA) para disseminação de notícias falsas.
Uma das razões para a ausência de ataque à Corte se deve ao
fato de que a operacionalização e organização das eleições municipais ficam a
cargo dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) nos estados. Nesse caso, o
papel do TSE é prestar apoio logístico e institucional, além de concentrar a
totalização dos votos.
Por outro lado, o tribunal enfrentou a onda de violência no
pleito deste ano. Foram 76 assassinatos em 2024, segundo levantamento do Grupo
de Investigação Eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Giel/Unirio). O número é mais que o triplo do mesmo período de 2020, quando
foram contabilizados 168 casos de violência política. Em 2022, foram 174 casos.
A situação fez com que a ministra Cármen Lúcia solicitasse aos Tribunais
Regionais Eleitorais, o Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal
prioridade na solução de casos.
Para o ano que vem
Além da conclusão do inquérito do golpe, o Supremo deve
retomar, no ano que vem, o julgamento que discute a responsabilidade das redes
sociais por conteúdos publicados por seus usuários. No total, são três ações
que discutem o Marco Civil da Internet, lei que regula a atuação das
plataformas no Brasil.
O debate gira em torno da constitucionalidade do artigo 19
do Marco Civil, que exige uma ordem judicial prévia para excluir conteúdo e
responsabilizar as empresas pelos danos causados pelas publicações. Os
processos em discussão estão sob relatoria dos ministros Dias Toffoli e Luiz
Fux.
"O tribunal enfrenta uma questão complexa, frente à
inércia do Legislativo em regular plataformas para coibir violações de
direitos. Alguns processos relativos à reforma tributária e corte de gastos
podem igualmente movimentar a pauta", ressalta Fabio de Sá.
No balanço de fim de ano, Luís Roberto Barroso anunciou que,
nas metas para o Judiciário em 2025, está o julgamento de processos mais
antigos dos acervos. O magistrado também apresentou um resumo das atividades
desenvolvidas pela Corte.
Ele citou temas, ações e projetos desenvolvidos pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como a homologação do Plano Pena Justa,
programa voltado ao aprimoramento do sistema prisional; e o fortalecimento do
Pacto Nacional pela Linguagem Simples, que busca dar maior transparência aos
textos jurídicos.
O presidente do STF destacou ainda as ações que vêm sendo
feitas para reduzir a judicialização no país e mencionou a extinção de mais de
7 milhões de processos de execuções fiscais, além da diminuição de 14% na taxa
de congestionamento de execuções ativas (de 83% para 69%).
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