Astronautas talvez nunca tenham pensado na condição
humana como hoje, por estarem encalhados numa estação orbital
Em “Orbital”, obra que deu à escritora inglesa Samantha
Harvey o prestigioso Booker Prize em 2024, seis astronautas ancorados na
Estação Espacial Internacional orbitam a Terra e contemplam a vida cá embaixo.
A missão do grupo (quatro mulheres e dois homens) é essencialmente científica —
testar os limites do corpo humano, coletar dados meteorológicos, realizar
experimentos. Contudo, durante esse orbitar que lhes permite observar, no
espaço de um único dia, a dança dos continentes, o ciclo das quatro estações, a
potência das geleiras, desertos, montanhas e oceanos, também a vida terrena os
alcança, com suas pequenas grandes tragédias. Recebem a notícia da morte da mãe
de um deles, acompanham a formação de um tufão que vai devastar uma ilha e
pessoas queridas, sentem a concretude da fragilidade humana.
Apesar de tão distantes, passam a se sentir
responsáveis, protetores em relação ao planetinha azul. E começam a pensar no
que seria a vida sem a Terra, e a Terra sem a humanidade.
— Ver a Terra do espaço é como uma criança que olha para um
espelho e percebe, pela primeira vez, que a pessoa no espelho é ela. O que
fazemos a nosso planeta fazemos a nós mesmos — explica a autora do livrinho
enxuto (160 páginas), cuja edição no Brasil deverá sair em 2025 pela editora
DBA.
Os astronautas Sunita “Suni” Williams e Barry Eugene “Butch”
Wilmore não são mais crianças. Ela, descendente de mãe eslovena e pai hindu,
tem 59 anos. Casada e sem filhos, mas com um processo de adoção em curso, é
veterana de missões espaciais. Ele, piloto de testes da Marinha, casado, duas
filhas, três missões espaciais no currículo. Já tiveram, portanto, múltiplas
ocasiões para se reconhecer no espelho da Terra. Mesmo assim, talvez nunca
tenham pensado na condição humana de forma tão absoluta como hoje, por estarem
encalhados numa estação orbital de 108 metros de comprimento, a 480 quilômetros
da Terra.
Na manhã primaveril de 5 de junho, a dupla decolou rumo à
Estação Espacial Internacional em viagem inaugural da cápsula Starliner,
fabricada pela Boeing, o combalido gigante da indústria aeroespacial americana.
Como se sabe, cinco dos 28 propulsores da cápsula deram defeito e foi preciso
abortar o retorno tripulado. O que deveria ter sido um vapt-vupt de oito dias
para testar o novo veículo se transformou em desterro infindo e incerto.
Inicialmente, a Agência Nacional Aeroespacial dos Estados Unidos (Nasa) adiou o
retorno de Suni e Butch por cinco semanas, depois aumentou para oito. Lá se
foram as férias de verão, um ou outro aniversário de alguém querido. Mais
recentemente, em setembro último, os dois foram informados de que passariam
Natal e Ano-Novo suspensos no ar, com previsão de retorno em fevereiro de 2025.
Na semana passada, nova atualização: talvez revejam amigos e familiares somente
em abril, quando terão completado dez meses em órbita.
Para a Boeing, cuja divisão de aviação civil há anos tenta
se recuperar dos problemas em sua frota de jatos comerciais 737 Max, o golpe
espacial é duro. A multinacional fora selecionada pela Nasa em 2014, com
a SpaceX de Elon Musk,
para desenvolver cápsulas capazes de absorver o ir e vir de astronautas da
Terra à Estação Espacial Internacional. Para isso, embolsou US$ 4,2 bilhões do
governo americano, mas já gastou mais de um terço para corrigir falhas
técnicas, de software, de material inflamável, válvulas defeituosas e sistema
de paraquedas falho. Enquanto isso, Musk nada de braçada. Será considerado o
salvador da pátria quando sua espaçonave Crew Dragon, da SpaceX, decolar de
Cabo Canaveral e resgatar Suni e Butch.
Uma longa permanência em órbita acarreta alterações físicas
conhecidas. Sem o efeito da gravidade, o rosto tende a inchar, uma vez que o
sangue e os fluidos corporais ficam estocados na parte superior do corpo. A
massa muscular também pode diminuir em até 30% em casos de estadia longa, e a
massa óssea sofre desmineralização com perda de força. A visão, a pele e até
mesmo o desempenho cognitivo costumam exigir cuidados especiais no retorno dos
desbravadores espaciais.
Muitos precisam reaprender a andar com naturalidade. Por
isso, recomenda-se aqui a Suni e Butch a leitura de “Caminhar, uma filosofia”,
do pensador francês Frédéric Gros. Trata-se de uma coletânea de ensaios,
sensível e erudita, sobre as muitas maneiras de irmos de A até B — seja em
peregrinação, a passeio, em marcha de protesto, em fuga, para pensar, criar,
aprender, Gros descreve assim nosso andar pela vida:
— Ao caminhar, você escapa da própria ideia de identidade,
da tentação de ser alguém, de ter um nome e uma história... A liberdade no
caminhar reside em não ser ninguém; pois o corpo que caminha não tem história,
é apenas um redemoinho no fluxo da vida imemorial.
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